Adoção tardia aumenta em 2023, mas só 2% dos pretendentes aceitam crianças com mais de 10 anos

Veículo: Colabora
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Preferência por crianças de pouca idade aumenta fila: quase 4.500 jovens esperam ainda por adoção, apesar de 35 mil estarem inscritos para adotar

Adoção tardia
Foto: Arquivo pessoal

Viviane Sauerbronn, 43 anos, e Wagner Pimentel, 49, sonhavam em ter filhos biológicos e adotivos desde o namoro. A dona de casa e o empresário de marcenaria, depois de casarem, iniciaram a jornada para expandir os integrantes da família, mas as tentativas de engravidar não vingaram. Ansiosos por um primogênito, inverteram a ordem pré-imaginada e deram entrada, em 2014, no processo de adoção. A primeira etapa foi buscar informações na Vara de Infância e Juventude de Niterói, cidade onde moram, e realizar um pré-cadastro com a qualificação completa, dados pessoais e perfil da criança ou do adolescente desejado.

Um menino branco de até 3 anos foi, naquele o momento, o perfil de filho que Viviane e Wagner enxergavam. Mas a medida que avançavam nas etapas de habilitação para adotarem e tinham acesso à informação, seja através de profissionais da Vara ou de Grupos de Apoio à Adoção (GAAs), o que previram nas folhas de perguntas múltipla escolha sobre etnia, gênero e idade foi desconstruído. No caminho para encontrarem seu filho, ouviram a seguinte orientação da equipe técnica multidisciplinar: “Imaginem-se pais de crianças diferentes do perfil que vocês traçaram, visitem um abrigo com o coração aberto e tentem se ver pais daquelas crianças”

Seguiram o conselho. Faz nove anos que o casal adotou dois irmãos negros, Flávio e Alejandro. “No Natal de 2014, uma amiga apadrinhou um lindo menino de 9 anos, e me falou sobre como ele era especial. Meu coração pulava a cada mensagem que eu recebia dela. Visitamos o abrigo com o coração aberto e conhecemos ele e o irmão, de 12 anos. No mesmo ano, já estavam na nossa casa”, disse Viviane. Mais tarde, receberam seu terceiro filho: Viviane engravidou, em 2015, de Samuel.

“O Samuel também foi adotado por eles”, diz Viviane sobre a relação entre os irmãos. “Deixamos bem claro que era ele quem estava chegando, Samuel não é o primeiro filho, é o terceiro. Tivemos muito medo de que Flávio e Alejandro achassem que seriam deixados de lado, então tivemos muito cuidado em inseri-los nesse processo, participaram da escolha do nome e ajudaram desde o o início”, complementa Wagner. Explicam, ainda, que depois de participarem de Grupos de Apoio e expandirem o conhecimento sobre o processo, entenderam que adotar é uma escolha que independe se o filho é biológico ou não. “Filhos biológicos também são adotivos. Se não fosse assim, não haveria abandono”, acrescenta Viviane.

Atualmente, Flávio tem 18 anos e finalizou o ensino médio em formação de professores; Alejandro tem 22 e trilha a carreira militar no segundo ano de concurso em Minas Gerais; e Samuel, diagnosticado como autista, tem 7 anos. Viviane conta que a relação dos irmãos é de muito carinho: “Alejandro veio passar as últimas férias em casa. Acordei de madrugada e, quando vi, Samuel havia saído da cama dele para dormir abraçado com o irmão mais velho. Quando olhamos a relação dos três, vemos mais do que havíamos sonhado”.

Flávio, que em questão de idade é o filho do meio, mas foi o primogênito do casal — o primeiro que a família conheceu através do contato com amiga que o apadrinhou no Natal de 2014 —, deixa um recado aos que buscam a união filioparental: “Um conselho aos pais: problemas na adolescência e a juventude são comuns a todas as pessoas, adotadas ou não. Tenham paciência e eduquem para ensinar os princípios e o caráter que uma pessoa na sociedade precisa ter”. Para jovens que vão ser adotados, indica que “tenham em mente que essa é uma nova chance de poder ser tratado como filho, e não como uma criança abandonada, que teve os seus problemas no passado. Se comportar como um filho é ter gratidão no coração, saber que sua nova família te ama e que o passado não vai se repetir”.

Idade, barreira para adoção

Apesar do acompanhamento jurídico multiprofissional e orientação de Grupos de Apoio, nem todas as famílias deixam de lado os requisitos no perfil das crianças como Viviane e Wagner. São mais de 35 mil pretendentes à adoção, categorizados por estado civil como casado (73%), união estável (14%), solteiro (9%) e divorciado (3%). Do total, apenas 2% aceita a adoção tardia — considerado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) como a partir dos 10 anos —, segundo dados atualizados da plataforma Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento (SNA). De um lado, 4.428 crianças e adolescentes aguardam uma família para chamar de sua; do outro, milhares de pessoas que desejam viver a parentalidade. A conta não fecha. Apesar da adoção tardia ter crescido 9,3% entre 2022 e 2023, crianças com mais de 10 anos ainda representam 60% das disponíveis para adoção.

A preocupação de inserir na família uma criança mais velha ou adolescente pode estar atrelado à interpretação de que o novo integrante chegaria ao lar com marcas do passado e apresentaria dificuldades na adaptação ao estilo de vida dos pais. Entretanto, Débora Sampaio, doutora em Psicologia Clínica e pesquisadora dos desafios contemporâneos para a parentalidade adotiva, reforça que esses requisitos sãos mitos impeditivos. “A preferência de escolha para adoção de bebês se justifica pela ilusão de que são mais fáceis de serem moldados.  Ao se tratar de uma criança maior, principalmente pelo fato de já existir a aquisição da linguagem, elas se posicionam diante dos pais adotivos de forma mais complexa e explícita em relação às suas demandas e conflitos”.

Ela diz, ainda, que a responsabilidade de lidar com a vida anterior dos filhos, influenciada pela cultura de seus genitores e de experiências passadas, é dos adultos. “São crianças que passaram por rupturas diversas e precisam ser recebidas com todo o seu lastro histórico. É muito comum que existam alguns desafios por parte dessa criança, porque o que ela tem de marca é a rejeição. Isso reflete numa testagem para poder comprovar se esse novo ambiente consegue aceitá-la com as partes boas e ruins. É nessa hora que famílias precisam estar firmes na intenção de se tornarem pais, para poderem dar o suporte necessário”, explica.

Para além da idade, menores com deficiência estão entre os menos adotados no último ano (3,7%), apesar de representarem 20% das crianças disponíveis para adoção. Outro fator que pode estender o tempo no sistema de acolhimento são os grupos de irmãos, visto que apenas 2,3% dos pretendentes adotariam mais do que duas crianças. São 1.686 crianças nessa situação em que, após longo período na espera por um lar, podem ser separados pela impossibilidade de serem adotados pela mesma família.

No artigo “Motivações para adoção tardia: entre o filho imaginado e a realidade”, a psicóloga aponta que é preciso conscientizar pretendentes para que requisitos sejam condizentes com a realidade da adoção no Brasil. Para tal, destaca os Grupos de Apoio à Adoção como fundamentais nesse processo, como aconteceu com Viviane e Wagner, que deixaram de lado a ideia de um filho branco de até três anos para dois irmãos negros com mais de 10 anos.  “Esse processo de revisão dos estereótipos acaba contribuindo para os candidatos alterarem o perfil das crianças que eles buscam adotar, flexibilizando-o e ampliando as possibilidades de inclusão”, conclui.

O Quintal de Ana e o papel dos grupos de apoio

No artigo, Débora descreve Grupos de Apoio como organizações da sociedade civil, sem fins lucrativos, que passaram a se organizar a partir de pais adotivos que identificaram a necessidade de se unirem para trocar experiências. Essa é a definição do Quintal de Ana, no qual Viviane e Wagner buscaram auxílio no início do processo de adoção de Flávio e Alejandro.

O nome faz referência à família dos criadores: Sávio Bittencourt e Maria Bárbara Toledo, casal que tem cinco filhos; três biológicos e duas meninas adotadas.  “Fundamos o Quintal a partir da adoção da Ana Laura. No processo, vimos uma inadequação no comportamento das pessoas, a adoção continuava sendo aquele tema proibido, que não merece revelação. Mas amor a gente não esconde, a gente assume. Sentimos a necessidade de criar uma força tarefa para apoiar outras famílias adotivas, para que não desistissem de seus projetos frente a esses preconceitos e estigmas sociais”, explica Bárbara.

Há mais de 20 anos, o Quintal de Ana trabalha em função do auxílio às famílias que desejam adotar e daquelas que estão em situação de risco social, para evitar a institucionalização de crianças. Nesse sentido, um dos projetos já realizados pela associação, “Um Lar Para Todos”, reuniu psicólogos, assistentes sociais e advogados para elaborar um Raio-x do contexto de crianças abrigadas na cidade de Niterói. Foram 390 crianças e 182 famílias atendidas, 63 reintegrações e 73 prevenções de abrigamento.

O projeto durou sete anos (2008 – 2014), e foi financiado pela Petrobras. “Quem eram aquelas crianças? Por que elas estavam ali? Quem eram seus responsáveis? A maioria das crianças abrigadas não estão em processo de reintegração porque já não tem mais referência familiar, ainda que os responsáveis estejam vivos, porque o vínculo afetivo não foi cuidado. Eram órfãs de pais vivos. Mas a gente conseguiu reintegrar 20% das crianças atendidas e continuamos acompanhando depois. A medida de adoção não é a última opção, é a única, ainda que pela própria família biológica”, explica Bárbara.

São trabalhos como esse, realizados pelo Quintal de Ana e outros 200 Grupos de Apoio espalhados no Brasil, que colaboram na garantia do direito à convivência familiar e comunitária de crianças e adolescentes institucionalizados, na perspectiva de uma cultura de adoção que prioriza os interesses e necessidades dos menores. “Essas crianças ficam à espera por anos, violadas do direito de viver num lar, perdendo a infância numa instituição que, por melhor que seja, não é uma família  — com quem ela vai ter um tratamento particularizado, amada e valorizada integralmente. Pai e mãe não tiram férias”, finaliza.

 

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