Apoio familiar é essencial para crianças trans crescerem felizes e livres
Um ano e oito meses foi a idade em que Agatha começou a demonstrar desconforto com o seu gênero de nascimento. Situações como tirar a camiseta na praia, como seu pai fazia, a deixavam muito mal. Em 2017, a comunicóloga curitibana Thamirys Nunes, 32, mãe de Agatha, ouviu pela primeira vez a palavra “trans” e buscou ajuda psicológica para entender o que acontecia com a sua criança.
Depois de várias sessões, a psicóloga deu o veredito: a mãe era muito vaidosa e o pai era muito ausente. A culpa era deles, que não estavam sabendo educar um menino. Nos dois anos seguintes, Thamirys não usou maquiagens, saltos e vestidos com medo de influenciar a criança. Nada surtiu efeito: quanto mais vivenciava o universo masculino, mais a criança recusava esse mundo. A comunicóloga ouviu, então, dela, aos três anos e oito meses: “Sabe o que é triste? É triste que eu nasci menino, né? Seria tão mais legal se eu fosse menina.”
Na festa de aniversário seguinte, o tema pedido foi unicórnio. Mas Thamirys decidiu fazer do Mickey. Resultado: a criança decidiu não participar da própria festa. Foi a gota d’água para que Thamirys ouvisse seu coração e não aquela profissional. “Eu tinha me tornado prisioneira de um sistema heteronormativo e cisgênero, estava sendo a carrasca do meu filho”.
Até esse ponto, Agatha tinha crises de ansiedade e de choro, dificuldades para usar o banheiro e roía as unhas até sangrar. Tudo por não poder ser quem ela é. Os choros chegavam a durar uma hora. Decidir permitir que Agatha vivenciasse o universo feminino não foi fácil, assume Thamirys. “Precisei me despedir do meu filho”, diz.
O processo foi lento. Primeiro um sapato, depois um laço de cabelo, depois uma camisola. Quem definiu os passos foi a própria criança. “Para mim, foi péssimo”, define a mãe. “Era como tirar um curativo devagarinho e a dor não passava, mas a nova psicóloga me lembrava que o processo não era meu”.
Em seis meses, já com 4 anos e meio, o comportamento da criança mudou completamente. De calada e retraída, passou a espoleta e feliz, do tipo que cantarola enquanto brinca. Até o novo nome foi Agatha quem escolheu. “Eu ofertei alguns nomes e ela recusou. Pediu em terapia uma lista de nomes e escutou ‘a gata’ e escolheu esse”.
“Aí que eu vi que tudo ia ficar bem e comecei a minha jornada de buscar outras mães que viveram esse momento sozinhas e abandonadas, porque somos abandonadas, pela nossa família, amigos e sociedade.” Foi assim que Thamirys se tornou ativista. Ela encontrou na sua trajetória a oportunidade de dar apoio e suporte emocional para outras famílias de crianças e adolescentes trans. Atualmente, é coordenadora na ONG Aliança Nacional LGBTI e no Grupo Dignidade, além de ser autora do livro “Minha Criança Trans? – Relato de uma mãe ao descobrir que o amor não tem gênero”.
Não existem dados oficiais de crianças e adolescentes trans no Brasil. Os únicos dados disponíveis são do AMTIGOS (Ambulatório Transdisciplinar de Identidade de Gênero e Orientação Sexual), do Hospital das Clínicas, que atua com crianças e adolescentes transgênero, e, hoje, atende 90 crianças trans até os 12 anos. Outro dado não oficial, mas que serve para uma estimativa, é de um grupo montado por Thamirys e outras famílias: de outubro de 2020 para cá, reuniram 129 famílias de crianças e adolescentes trans, de 3 a 17 anos.
“Minha criança é uma criança trans”
Em Fortaleza (CE), do outro lado do país, uma família passava por vivências parecidas. A autônoma Jaciana Batista, 34, lembra que desde os dois anos de idade, seu filho mais novo, hoje Gustavo, já mostrava indícios de ser uma criança trans. O choro era frequente na vida da criança, que arrancava qualquer laço ou tiara que tentavam colocar em seu cabelo. Em certa ocasião, chegou até a arrancar parte do couro cabeludo tamanho era seu incômodo. “Eu achava que era birra”, lembra Jaciana.
A mãe ainda não conhecia a transgeneridade infantil. “Eu estava muito preocupada com ele, até que Deus colocou na minha vida uma prima, que é mulher trans”. Foi quando essa prima indicou um programa de televisão dos EUA com uma adolescente trans. “Aí eu percebi que a minha criança era uma criança trans”.
Em Fortaleza, Jaciana foi chamada até a escola de Gustavo. Quando a direção chamou a criança, a mãe perguntou o que estava acontecendo: “Mamãe, eu cheguei para um amiguinho e falei que era um menino. Ele me bateu e nenhuma criança mais brinca comigo”.
Desesperada ao ver o filho de 5 anos passar por isso, Jaciana chegou em casa, chamou sua esposa e foram conversar com Gustavo. “Ele começou a chorar, falando que nunca se sentiu como ele era e que ele não se entendia”. Jaciana, então, pegou as roupas da criança, levou em um bazar e trocou por roupas que o deixassem confortável.
“Quando ele abriu o saco de roupas e viu que era tudo dele, começou a vestir as roupas e chorar”. Foi nesse momento que Gustavo comunicou à família que gostaria de ser chamado dessa forma dali em diante.
Para Jaciana, é preciso naturalizar as crianças trans para impedir a violência e as mortes. A mãe conhece de perto a dificuldades que pessoas LGBTQIA+ passam dentro de casa. Ela morava na cidade de Souza, na Paraíba, mas precisou se mudar após sofrer ameaças e agressões da própria família, quando contou a eles que era lésbica. Foi aí que Jaciana decidiu, então, pegar os três filhos e ir para Fortaleza, onde não conhecia ninguém.
Como vamos conseguir respeito para os nossos filhos se os escondermos? Se eu amo minha criança, não importa se é homem, mulher, os dois ou nenhum dos dois, o importante é ver que é feliz
Jaciana
Gustavo sonha em ser blogueiro. Por conta disso, sua mãe criou e administra um perfil no Instagram para o filho, que em um ano atingiu 15 mil seguidores. A fama expôs a família à transfobia, que chegou a receber ameaçar de morte. Jaciana precisou, mais uma vez, deixar tudo para trás e se mudar com os filhos. O novo destino foi a zona oeste da cidade de São Paulo, após ajuda da ONG Casa Chama, organização civil de ações socioculturais com foco em artistas trans.
A atriz Leona Jhovs, 33, co-fundadora da Casa Chama, pontua que o inédito das crianças trans de agora é a forma como as famílias estão lidando com a questão. “Eu fui uma criança trans, mas não pude liberar essa natureza. É muito importante que agora temos pais que acolhem e respeitam”, afirma.
Leona argumenta que a visibilidade de pessoas trans e travestis na mídia ajuda nessa mudança de comportamento das famílias. “Muitos pais e mães chegam para mim e falam que sou uma referência. O que eles querem falar é que veem uma possibilidade do filho ou da filha ser feliz, que enxergam algo fora da marginalidade.”
Criança não faz uso de hormônio nem cirurgia
A pediatra e hebiatra Andrea Hercowitz, coordenadora de saúde do coletivo Mães pela Diversidade, explica que o momento da revelação, que é quando a criança ou o adolescente contam para as famílias sobre sua identidade de gênero, é o passo mais importante. “A compreensão começa dentro do lar para [a pessoa] poder se fortalecer e encarar as coisas que virão mundo afora”, define.
Segundo Andrea, a identidade de gênero vai sendo percebida ainda na primeira infância, por volta dos 4 aos 6 anos, idade de Agatha e Gustavo. “Temos relatos de crianças de 2 ou 3 anos que já se sentem incomodadas com as roupas que os pais colocam. Isso gera muito sofrimento, em que as crianças podem ter lesões de pele e até vômitos. Isso é o que chamamos de disforia de gênero”, explica.
O primeiro passo que os pais e mães precisam ter, explica a médica, é respeitar a criança. “A criança fala. Ela verbaliza ou fala por gestos e comportamentos. É importante ter aquela ideia de que brinquedo e roupa não têm gênero, permitir que a criança vivencie o que a faz feliz”, completa.
Quando se fala em identidade de gênero, explica a médica, não existe doutrinação. “É preciso normalizar essas existências”, argumenta. “Nem família, nem médico, nem escola tem o poder de mudar a identidade de gênero de outra pessoa. Não dá para ‘curar’ uma pessoa LGBTQIA+ como também não dá para transformar uma pessoa hétero e cis [quem se identifica com o gênero do nascimento] no que ela não é”.
No caso de Agatha, por exemplo, o único acompanhamento que ela faz hoje, conta a Thamirys, é terapia. “Ela precisa fazer? Não. Se a gente não vivesse em uma sociedade tão preconceituosa, ela não precisaria fazer. Mas vivemos e ela já sofreu algumas coisas e vai sofrer outras, então ela está em terapia para se fortalecer.” Gustavo também só faz esse tipo de acompanhamento.
Andrea explica que o atendimento para crianças e adolescentes transgêneros no Brasil segue o protocolo do Conselho Federal de Medicina: nenhuma criança ou adolescente menor de 16 anos passa por aplicação de hormônios ou cirurgias. A única mudança, garante a especialista, é social. Isso costuma incluir nomes, pronomes, roupas e cortes de cabelo que ajudem a criança a expressar sua identidade.
Na puberdade, continua a médica, que começa aos 8 anos nos meninos trans e aos 9 nas meninas trans, se a pessoa continua demonstrando variabilidade de gênero, é feito o bloqueio puberal, que é um remédio usado desde os anos de 1980 para pessoas que têm puberdade precoce. “É uma injeção mensal ou trimestral, que tem a intenção de que essa pessoa não desenvolva o que chamamos de caracteres secundários porque isso vai trazer muito sofrimento”.
Andrea aponta que o bloqueio é totalmente reversível. “Quando as injeções param, o processo de puberdade continua normalmente. O bloqueio é feito, por lei, até os 16 anos de idade. Somente a partir dos 16 anos, pela via particular, e a partir dos 18 pelos SUS, os meninos trans podem começar a usar testosterona e as meninas trans o estrógeno. As cirurgias somente após os 18 anos”.