Brasil falha ao notificar casos de exploração sexual

Veículo: Revista AzMina
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Brasil falhaA assistente social Adriana Duarte tem mais de 30 anos de atuação em serviços de acolhimento a meninas e mulheres vítimas de violência. Em 2008, ela realizou uma atividade educativa para prevenir a exploração sexual. O público era formado por 25 mulheres e meninas, com idade entre 10 e 12 anos, de uma comunidade da periferia de Olinda, Região Metropolitana de Recife, em Pernambuco. Naquele dia, uma situação a intrigou: “Quando eu comecei a explicar que oferecer dinheiro em troca de carícias sexuais é crime, algumas meninas disseram: ‘tia, eu sei o que é isso, é o que João* pede para fazer com a gente”, recorda.

Ao fim da atividade, a assistente social reuniu-se com as 12 garotas que estavam ali e descobriu que elas eram vítimas de exploração sexual. As meninas relataram que o dono de um pequeno comércio no bairro oferecia dinheiro para que elas deixassem ele manipular as suas genitálias. Ele propunha ainda recompensa em dinheiro para que elas fizessem sexo oral nele. Adriana formalizou a denúncia, o caso foi investigado, foram descobertas outras vítimas, e o culpado foi punido. “Mas o Conselho Tutelar não havia entendido aquilo como exploração, e, sim, como abuso sexual”, afirmou.

Abuso e exploração são crimes diferentes, com penalidades distintas. Eles podem ocorrer juntos, mas o primeiro (isoladamente) não compreende pagamento para o ato sexual criminoso, já a exploração tem uma contrapartida (que não necessariamente é dinheiro). Nesse caso de Olinda, não tivemos acesso aos autos e a fonte não relevou por quais crimes o acusado respondeu. A reportagem d’AzMina entrou em contato com um conselheiro tutelar, que atuava na comunidade na época, mas ele informou que não encontrou nenhum registro nos arquivos da instituição.

O erro de registro apontado pela assistente social é uma amostra da subnotificação que ronda a exploração sexual no Brasil. A confusão entre o que é abuso e o que é exploração sexual é uma das razões para a falha técnica, mas não é a única, e as consequências são muitas.

Incentivo à impunidade

Adriana Duarte afirma que o registro de exploração como abuso incentiva a impunidade. “O abuso é um problema interpessoal, envolvendo a vítima e o agressor que, quase sempre, é da família. Já no tráfico e exploração há um comércio ilegal”, explica a assistente social.

A advogada do Instituto Alana, Mariana Albuquerque, esclarece que o abuso sexual acontece independentemente de uma moeda de troca. “A exploração sexual, por sua vez, inclui necessariamente uma moeda de troca, que pode ser dinheiro, comida, um objeto, qualquer coisa.”

As penas para esses crimes são calculadas a partir de uma série de fatores. São levadas em conta questões como: se o acusado é réu primário e se a prática de abuso e/ou estupro ocorreu juntamente com a exploração sexual. Por isso, é muito importante que a notificação e o relato deste crime sejam feitos corretamente para o estabelecimento adequado da pena.

Qualquer ator da rede de atendimento, ao ouvir um caso de exploração sexual, precisa denunciar diretamente à delegacia para ser feita uma investigação. “Isso pode ocorrer na forma de relatório, não é preciso que a criança ou adolescente relate várias vezes a violência sofrida”, destaca Adriana.

Um problema nacional

O Brasil ocupa o segundo lugar no ranking mundial em número de casos de exploração sexual de crianças e adolescentes, chegando a 500 mil vítimas, conforme informações disponíveis no Instituto Liberta. Os dados oficiais nem sempre separam abuso e exploração. É comum se verificar estatísticas sobre violência sexual – termo genérico que une abuso e exploração -, violações e prostituição infantil.

A subnotificação destes crimes é um problema em todo o país. A pesquisa ‘Violação de direitos de crianças e adolescentes em eventos esportivos’, realizada pela Childhood, na Copa do Mundo de 2014, traz essa realidade. O estudo se debruçou sobre dados do Disque-denúncia, delegacias especializadas ou não, Conselhos Tutelares e Unidades de Saúde de Salvador, Belém e Rio de Janeiro, entre os anos de 2012 e 2014. Nesse período, Salvador e Rio de Janeiro viviam uma movimentação diferenciada em função da Copa do Mundo e das Olimpíadas de 2016. Um dos relatórios aponta que a violência sexual não apresentou aumento significativo de casos, “evidenciando possível subnotificação”.

A gerente da ChildHood Brasil, Eva Dengler, enfatiza que cada órgão da rede de atendimento usa um documento diferente como referência para analisar a exploração sexual. “A polícia analisa a denúncia com base no Código Penal, o que, muitas vezes, faz com que o abuso seja registrado como estupro e a exploração sexual como ‘prostituição infantil’”, relata. Ainda segundo a gestora, os canais de denúncias têm outra referência, e as instituições de assistência e proteção precisam de qualificação técnica. “Há falhas de comunicação na rede de proteção”, resume Eva.

A advogada do Instituto Alana alerta que há uma confusão entre exploração sexual e prostituição infantil, que sequer existe A violência sexual praticada contra uma criança menor de 14 anos é estupro de vulnerável.

Tráfico de criança entre cidades

Essa explicação ajuda a elucidar outro caso relatado pela assistente social Adriana Duarte à reportagem. Ela atendeu uma menina de 10 anos, que era sedada pelo pai e levada de uma comunidade da periferia do Recife até outra comunidade da periferia de Olinda. Lá, ela era estuprada por um idoso em troca de uma quantia em dinheiro que era paga ao pai. Esse é um caso de tráfico de pessoas para fins de exploração sexual. O tráfico não acontece apenas entre países, mas entre bairros e cidades também. “Porém, esse caso foi registrado como abuso sexual”, exemplifica Adriana.

Para haver ‘prostituição’, deve haver consentimento, “mas nos crimes de exploração sexual, a criança está sendo utilizada para fins sexuais”, reforça Mariana Albuquerque. A exploração sexual pode envolver atividade sexual com moeda de troca apenas entre a vítima e o abusador ou pode ter a participação de terceiros que atuam incentivando, patrocinando o uso da criança ou adolescente em atividade sexual para obter vantagens comerciais.

A ChildHood realiza capacitações com as organizações que integram a rede de combate ao abuso e à exploração sexual de crianças e adolescentes pelo Brasil. Eva explica que, para isso, é feito um diagnóstico sobre a estrutura das instituições e os casos. E foi identificado que profissionais da área de assistência e de segurança não tinham conhecimentos sobre as diferenças entre os crimes.

Identificaram também a falta de um protocolo que uniformize a atuação de todas as instituições, desde aquela que recebe a denúncia até a que vai auxiliar no processo de superação da violência. Essa falta de fluxo faz com que a vítima precise relatar diversas vezes a violência sofrida. “Vimos que muitos conselhos tutelares fazem o registro dos casos em cadernos, fica difícil até de contar os registros”, aponta Eva.

A situação em Pernambuco

AzMina obteve acesso aos Dados de abuso sexual comparados aos de exploração sexual de 2022, elaborado pela Serviço de Atendimento Especializado a Famílias e Indivíduos (PAEFI) de Pernambuco. O documento mostra uma disparidade entre os registros de abuso e exploração sexual.

A cidade do Cabo de Santo Agostinho, localizada na região Metropolitana do Recife, por exemplo, registrou 57 casos de abuso e 0 de exploração sexual. Outros exemplos são os municípios de Serra Talhada, no Sertão Central do estado, e Palmares, na Mata Sul pernambucana, que registraram, cada um, 16 ocorrências de abuso sexual e nenhuma de exploração.

Há uma incoerência quando cruzamos esses dados com a Rota da Exploração Sexual de Pernambuco, dado que integra a Pesquisa sobre Enfrentamento à Exploração Sexual Comercial de Crianças e Adolescentes no Brasil. A Rota foi elaborada pelo Grupo de Estudos Gecria, ligado à Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e reúne as localidades com grande potencial para a ocorrência da exploração sexual.

As cidades que estão na Rota da Exploração possuem um turismo intenso, são pólos industriais e de referência para a realização de atividades econômicas. Cabo de Santo Agostinho, Serra Talhada e Palmares, citadas acima, fazem parte disso.

É bastante improvável que esses lugares de grande atividade turística como o Cabo de Santo Agostinho, com suas famosas praias, e a ilha de Fernando de Noronha não tenham nenhum registro de exploração sexual. “Há claramente uma subnotificação nesses dados”, avalia a coordenadora da Rede de Enfrentamento ao Abuso e Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes de Pernambuco, Dolores Fantoso.

Dolores destaca que a pobreza e a desestruturação social da população nativa desses municípios agravam o campo fértil para a exploração sexual. “Ao encontrarem suporte afetivo, econômico e familiar, muitas mulheres não reconhecem que são vítimas de exploração sexual”, acrescenta a assistente social Adriana Duarte.

Sem registros, sem políticas de enfrentamento

A subnotificação dos casos de exploração sexual, além de mascarar a violência, compromete a adoção de políticas públicas de enfrentamento. “Se não tem dados que mostram o tamanho do problema, como vai se chamar atenção para isso?”, questiona a advogada Mariana Albuquerque.

O Brasil não tem unidade de atendimento à exploração sexual, conforme constatou Eva Gendler durante a pesquisa sobre violação de direitos no período da Copa de 2014. “Se a pessoa técnica não estiver atenta para perceber que uma menina com denúncia de maus tratos, na verdade, é vítima de exploração sexual, compromete o atendimento”, explica a gerente da ChildHood Brasil.

É fundamental que o técnico que recebeu a denúncia inicial tenha um retorno do profissional de acompanhamento para saber se houve alguma mudança na identificação do crime no decorrer do processo. “Todos os membros da rede precisam saber do fluxo que essa criança está seguindo”, indica Eva.

O problema das políticas voltadas ao combate à exploração sexual é falho porque “as instituições olham para si e não para a criança”, enfatiza a gerente da ChildHood. Ela sugere a criação de um Comitê Municipal formado por todos os órgãos da rede de atendimento, desde a área da saúde, passando pela polícia, assistência social e Conselho Tutelar, de acordo com a realidade de cada município.

Para denunciar qualquer caso de violência sexual infantil, é possível procurar o Conselho Tutelar, delegacias especializadas, autoridades policiais da sua região ou ligar para o Disque 100.

*Os nomes dos conselheiros e do comerciante denunciado não serão relevados por pedido das pessoas que relataram o crime de exploração sexual.

 

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