Cerca de 44 mil crianças ficam órfãs de ao menos um dos pais no Brasil por ano desde 2021, aponta levantamento
No Brasil, uma média de 43,9 mil crianças e adolescentes de até 17 anos ficam órfãos de pelo menos um dos pais por ano desde 2021. Os dados são de um levantamento inédito dos Cartórios de Registro Civil.
Gustavo Renato Fiscarelli, presidente da Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen-Brasil), explicou que apenas a partir de 2021 foi possível cruzar dados dos CPFs dos pais existentes nos registros de óbitos com os de nascimento os filhos. Até a metade de 2019, não era obrigatória a inclusão do CPF dos pais no registro de nascimento dos filhos, o que dificultava a mensuração de órfãos até 2021.
Segundo os dados consolidados pela Arpen:
- 2021: 41.147 órfãos no país;
- 2022: 39.411;
- 2023: 47.813;
- 2024 (até outubro): 47.443.
Quando consideradas crianças e adolescentes que ficaram órfãos de ambos os pais, foram:
- 2021: 790
- 2022: 771
- 2023: 859
- 2024 (até outubro): 761
Órfãos da Covid
Os dados apontam que a Covid deixou, desde 2019, 13.808 crianças órfãs de pelo menos um de seus pais no Brasil. Se forem consideradas doenças correlacionadas ao coronavírus no período, o número pode chegar a pelo menos 23.612.
Ainda segundo o estudo, ao menos 188 crianças perderam tanto a mãe quanto o pai em razão da doença, número que pode ser ampliado a 340, se forem considerados óbitos de doenças à época relacionadas com a Covid. Os dados do levantamento ainda apontam um reflexo no número de órfãos por Infarto, AVC, sepse e pneumonia.
‘Sempre mandava mensagens, sempre se preocupava’
Inácio dos Santos tinha 80 anos e não resistiu à Covid em janeiro de 2022. O taxista da capital paulista tinha 8 filhos, 10 netos e 3 bisnetos. Leonardo Matheus Maciel dos Santos, o caçula, tinha 14 anos, na época.
“Os momentos após a morte do meu pai realmente foram bastante dolorosos. Eu não sabia os motivos, sempre era uma depressão constante, e aqueles pensamentos de não saber o que fazer. Problemas dentro da escola me fizeram ficar parado por um ano, e esse problema aconteceu junto com a morte do meu pai. Demorou para eu conseguir recuperar o fôlego e voltar a remar. O tempo passou, só conseguimos nos adaptar com a força que nós temos”, disse ele à TV Globo.
Em referência ao seriado mexicano Chaves, Inácio era chamado por parentes e amigos de “Seu Barriga”. Segundo Beatriz Maciel dos Santos, outra filha do taxista, ele pegou Covid numa festa de família de final de ano. O idoso tinha hipertensão e não resistiu.
“Foi tudo muito rápido e muito difícil. A minha mãe ainda é viva. E isso foi muito importante para mim, para meu irmão, especialmente, porque a gente tinha esse apoio dela. A gente se fortalecia nessa questão.”
Na época, Inácio morava sozinho e se isolou no período da quarentena. Os filhos faziam compras e levavam marmitas ao pai. Apesar da distância, segundo Beatriz, ele fazia questão de se manter, de alguma forma, presente.
“Sempre mandava mensagens, sempre se preocupava com todo mundo, via alguma notícia na TV e falava: ‘Vai com cuidado, presta atenção, olha a hora, vai chover’”, lembra.
Legado de esperança
A morte do comerciante João Parreira, de 48 anos, também pela Covid, em abril de 2021, deixou um vazio na família formada por cinco filhos e a esposa, e na comunidade do Jardim Peri, na Zona Norte de São Paulo, onde ele liderava um projeto social que atendia mais de 120 crianças de baixa renda.
No projeto, Parreira era o coordenador, o técnico, o orientador profissional, o motorista e até o roupeiro, lavando ele mesmo os uniformes usados pelas crianças aos jogos que faziam pelo time do Jardim Peri.
Segundo o g1 mostrou na época, a preocupação de Parreira com as crianças do projeto era tanta que, quando alguma estava em situação muito vulnerável, ele pedia autorização para a família e levava o jovem para morar na casa dele.
A viúva de João, Fátima Parreira, tenta seguir em frente com os filhos de 17 anos, 16 e 14.
“O que mais me doeu foi quando fez um ano do falecimento do Parreira. Meu filho veio, me abraçou e disse: ‘Eu não pedi para Deus para ser órfão tão jovem. Eu não vivi tanto para ver meu pai morrer’. Eu abracei meus filhos e disse: ‘Se o seu pai estivesse aqui, ele diria para vocês que Deus deu a vida para vocês, para vocês agirem com ela com sabedoria. Ame cada minuto, cada segundo, porque o tempo não tem preço. E o tempo de Deus na vida do seu pai aconteceu”, lembrou.
“Quando às vezes eu choro, como estou chorando agora, eu posso ouvir a voz do meu marido dizendo que Deus está até no meio das suas lágrimas. Então, eu sigo em frente. Não tem sido fácil, de forma nenhuma.”
Os esforços pessoais do “Joãozinho”, como era conhecido na comunidade do Peri, renderam frutos. Pelo menos quatro atletas do projeto se tornaram jogadores profissionais e assinaram contrato com clubes como Corinthians, Fluminense e Nacional.
‘O luto é um processo’
A psicóloga Maria Helena Franco, especialista em luto, observa que o luto não ocorre por fases, mas sim por meio de um processo complexo, dinâmico e individual.
O luto não atinge apenas uma pessoa, mas todos da família, só que cada um à sua maneira, reforça a especialista. No caso da criança, ela vai viver o luto de acordo com o momento dela no seu desenvolvimento.
“Não posso dizer que uma criança de 3 anos vai reagir da mesma maneira que seu irmão de 8 anos. O desenvolvimento da criança fala forte sobre como ela vai enfrentar, como ela vai resolver e também a sua base segura, a sua rede de apoio, que são as pessoas a quem ela recorre numa situação crítica, numa ameaça, quando ela busca segurança.”
No caso da morte de um companheiro, no qual o pai ou a mãe ficou ficaram viúvos, a especialista alerta que deve se atentar qual era o papel da pessoa naquele sistema familiar.
“Era quem garantia que o cotidiano fosse realizado, e a criança se sentia segura? Sem dúvida, a gente vai precisar entender que falta esta pessoa faz, o significado da falta daquela pessoa para a criança. E a outra coisa: quem está com ela? Em que condição essa pessoa está? Pode ser alguém da família, parentes que vão criar a criança e que mal a conheciam, que não conhecem seus hábitos.”
Maria Helena cita um caso no qual trabalhou, em que avós ficaram com os netos.
“Eles estavam num outro momento da vida. Já tinham criado seus filhos, tinham contato com os netos, amavam os netos, mas eles estavam vivendo outro projeto para quem já vivia um monte de coisa. Foi difícil para eles se entenderem naquela condição e se adaptarem a um outro mundo. São pessoas que precisam ser acompanhadas. Eu acho muito delicada essa experiência.”