Combater a pobreza na infância reduz a chance do jovem ir para o crime em 22,5%, diz estudo

Veículo: O Globo - RJ
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Mãe solo de três filhos, Marcele Braga, de 30 anos, hoje se desdobra entre o trabalho como manipuladora de alimentos, que lhe rende apenas um salário mínimo por mês, e bicos de diarista para conseguir oferecer o básico às crianças: casa e comida. Moradora do Complexo da Maré, comunidade da Zona Norte do Rio marcada por guerras de facções do tráfico e operações policiais violentas (a última foi segunda-feira, dia 26, que deixou sete mortos), ela diz se esforçar tanto para que o trio um dia não veja na criminalidade a chance de sair da vulnerabilidade. Algo que viu acontecer com amigos da infância.

A proposta de Marcele é certeira. Estudo realizado por pesquisadores da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) mostra que combater a pobreza durante a infância poderia reduzir em quase um quarto o risco de um jovem cometer crime. Desenvolvida no Brasil e publicada na revista Scientific Reports, a pesquisa se deu a partir de uma medida ampla de pobreza, que envolvia baixa escolaridade do chefe da família, baixo poder de compra e limitado acesso a serviços básicos — únicos fatores relacionados à criminalidade que poderiam ser prevenidos, segundo a análise.

Apesar de concluir que entre as 1.905 crianças acompanhadas cerca de 89% delas não cometeram nenhum crime na juventude, destes 11% que relataram envolvimento criminal, 4,3% o associaram à condição de pobreza. Entre as infrações mais comuns cometidas estão roubo, tráfico de drogas e crimes violentos, incluindo um homicídio e uma tentativa de homicídio. Em um cenário de melhor oportunidade de renda e escolaridade, 22,5% dos casos poderiam ter sido evitados.

— O nosso achado, pelo qual o único fator associado com crime foi aquele indicador mais abrangente de pobreza, que vai além da renda familiar, é interpretado a partir da compreensão das diversas adversidades às quais estão expostas as crianças em vulnerabilidade social — explica a autora do estudo, Carolina Ziebold.

Uma das inovações do estudo é o método adotado: foram analisados 22 fatores de risco que podem ter impacto no desenvolvimento humano, entre eles, riscos perinatais, transtornos do comportamento, bullying, conflito familiar, falta de controle parental e pobreza.

Os entrevistados eram parte de um estudo iniciado em 2009, com jovens de escolas em São Paulo e Porto Alegre, para investigar fatores de risco para o desenvolvimento de problemas de saúde mental. Participaram pessoas de 6 a 14 anos, que foram assistidas por um período de sete anos, até a juventude.

A pesquisa partiu de um “estudo de associação ampla”, abordagem bastante empregada em genética, mas pouco aplicada à criminalidade. O método explora uma ampla gama de exposições potenciais relacionadas a um único resultado. Nesse caso, os cientistas trabalharam com as múltiplas exposições modificáveis — perinatais, individuais, familiares e escolares — associadas à criminalidade juvenil para identificar alvos potenciais para a prevenção do fenômeno.

Quando um fator de risco significativo é apontado, como foi a pobreza, pode ser um alvo de políticas de prevenção.

Pobreza ‘multidimensional’

Criador do Bolsa Família, o economista Ricardo Paes de Barros é um dos desenvolvedores de um painel sobre a pobreza lançado na última quarta-feira, em uma parceria do movimento Brasil sem Pobreza com a Oppen Social. A plataforma, que reúne 30 indicadores, como trabalho, saúde, segurança pública, habitação, nutrição e assistência, de 5.500 municípios brasileiros, auxiliará estudiosos a mapearem melhor as vulnerabilidades sociais, incluindo da infância, em uma perspectiva associativa, como na pesquisa da Unifesp. “A pobreza é multidimensional e não pode ser reduzida a uma medida escalar”, disse Barros, por ocasião do lançamento da plataforma.

Para desviar o olhar dos filhos mais velhos, Ana Beatriz e Luiz Felipe, de 13 e 11 anos, da criminalidade que assola a Maré, Marcele também foi atrás de educação e atividades matriculando-os na ONG Luta pela Paz, há 22 anos na comunidade. A instituição oferece aulas de lutas marciais combinadas às de reforço escolar a 1.878 pessoas de 4 a 29 anos.

— Às vezes falta o que comer em casa e preciso trabalhar o dobro. Graças a Deus tem a ONG que nos ajuda com apoio psicológico e também na educação dos meus filhos. Eles ficam muito tempo aqui aprendendo e eu fico feliz porque sei que não estão na rua — diz Marcele.

A educadora social da Luta pela Paz Marianne Bello afirma que as ações servem para mostrar às crianças, jovens e adultos que eles podem estudar e praticar um esporte para construir uma história lícita. Desde que iniciou as atividades, a ONG testemunha idas e vindas de jovens que se perdem e se recuperam do tráfico.

— A Maré é um território desprovido de direitos e políticas públicas. Mas nós enxergamos o jovem como agente de mudança, que acontece através da educação. Ele compreende que a vida não é só a troca de tiros, dá para sonhar com um futuro com comida na mesa e mais direitos — afirma a educadora.

Crianças vulneráveis

As crianças são a parcela mais vulnerável no Brasil. Relatório do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) divulgado em março deste ano apontou que crianças e adolescentes são os mais afetados pela pobreza — o dobro em comparação aos adultos. Até o início de 2020, aproximadamente 40% das crianças e dos adolescentes brasileiros viviam em pobreza monetária, com menos de US$ 5,50 ao dia, contra 20% dos adultos. Para a pobreza monetária extrema, com US$ 1,90/dia, as taxas para crianças e adultos, respectivamente, eram cerca de 12% e 6%.

Durante o terceiro trimestre de 2020, quando o auxílio de R$ 600 era distribuído entre os mais pobres, a pobreza monetária infantil caiu de cerca de 40% para 35%. Nos três meses seguintes, com a redução do benefício, o índice aumentou novamente, para 39% — voltando a patamares semelhantes ao cenário pré-pandemia Em relação à pobreza monetária infantil extrema, o percentual caiu de 12% para 6%, voltando a 10% nos mesmos períodos. No final de 2021, a insegurança alimentar também atingiu recorde no país, superando a média global. Segundo dados divulgados pelo Centro de Políticas Sociais do FGV Social, a taxa passou de 17% em 2014 para 36% no ano passado, quando a média global foi de 35%.

De acordo com Carolina Ziebold, uma preocupação do estudo foi a de “não criminalizar a pobreza, mas mostrar que é um fenômeno complexo, cuja exposição do indivíduo a essa situação ao longo da vida gera uma tragédia social.

—A criminalidade é um fenômeno social e somente a punição a jovens não é adequada. É preciso criar possibilidades reais de reabilitação e dar oportunidades de vida — diz.

Carolina destaca que serão necessários outros estudos para entender como as vulnerabilidades dos locais onde as crianças moram podem influenciar a criminalidade praticada por jovens.

— Esse tipo de fator tem sido observado em pesquisas em outros países, como nos Estados Unidos, onde aumentam as chances de o jovem cometer crimes se eles morarem em bairros sem estrutura ou com gangues. Um tema para novas pesquisas.