Como a covid alterou o primeiro ano de vida de bebês que nasceram na pandemia
Nascer em 2020 foi uma experiência diferente para os bebês que agora integram a “geração pandemia”: o convívio deles se restringe aos pais, interagem com os parentes por videochamadas e os momentos mais marcantes são divididos com familiares e amigos pelo WhatsApp. Os passeios e encontros com outras crianças ficaram para depois, e as brincadeiras são realizadas na sala de casa.
De acordo com a Secretaria de Saúde do Distrito Federal, no ano passado, nasceram 52.158 crianças nos hospitais públicos e privados da capital, e vão completar um ano de vida em meio à maior crise sanitária da história do país. Apesar da taxa de natalidade parecer alta, os dados seguem uma tendência de queda — 5% menor do que em 2019.
Enquanto esses bebês se desenvolvem, o país atravessa o colapso nos sistemas de saúde provocado pela alta nos números de casos e mortes pela covid-19 e as incertezas na economia aumentou. Em meio ao cenário caótico, o sopro de esperança por novos tempos chegou com o desenvolvimento de vacinas, que, embora pequena quantidade, dão início à imunização da população.
A psicóloga infantil Camila Ferrari destaca que é na primeira infância que vários marcos de desenvolvimento ocorrem. A necessidade de isolamento social na pandemia acaba por privar essas crianças de interações sociais e estímulos sensoriais importantes para esta fase da vida. “A criança tem sede de pele, de interação, e desenvolve as primeiras emoções e reações”, lembra.
No entanto ela ressalta que, mesmo nas atuais condições, é possível proporcionar um crescimento adequado aos pequenos. “Se os pais estiverem atentos ao desenvolvimento da criança, não espero atrasos, dependendo da qualidade da estimulação que é dada em casa: sentando para brincar, diminuindo tempo de tela, tendo uma interação real”, aconselha.
Chegada em meio ao caos
A controladora de voo Camila Fagundes, 32 anos, estava nas últimas semanas de gestação quando começaram a se tornar mais frequentes as notícias sobre a confirmação dos primeiros casos de covid-19 no país. “Cheguei a ter um caderninho para anotar o número de casos e mortes, tinha uma esperança boba de que meu filho nasceria em uma situação muito melhor”, conta. “Planejava receber as pessoas no hospital, fazer lembrancinha, mas acabou que fomos só eu, meu marido e o neném”, conta.
A psicóloga Camila Ferrari diz que, mesmo virtualmente, as redes de relacionamento são efetivas. “A rede de apoio é formada por aquelas relações mais significativas, que impactam como lidamos com a própria existência: fazem companhia, dão conselhos e uma regulação social. Mais do que nunca, tem sido acionada para a saúde mental das famílias”, explica.
Apoio virtual
Longe do convívio dos parentes, o jeito que as famílias encontraram para manter essas redes foi recorrendo à internet. A jornalista Deborah Fernandes, 29, mora em Brasília, mas a família toda é de Natal (RN). Ela queria evitar que a filha Maria Fernanda, de 11 meses, fosse exposta a telas de tablets e celulares até os dois anos de idade, mas acabou recorrendo às videochamadas. “Era a única ferramenta que a gente tinha, dava para aquecer o coração, mas nada como um abraço, o carinho e a presença”, diz.
A orientação da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) é de que as crianças de até um ano de idade não tenham contato com as telas. Mas, como a internet é, hoje, a via de contato social mais segura, a psicóloga Camila Ferrari ressalta que essa exposição deve ocorrer “com supervisão e limite a esses momentos específicos”.
Para a especialista, o risco é de que, com pais sobrecarregados, o uso de tablets e celulares se torne uma forma de entreter os filhos. “Assim, a criança deixa de pegar no brinquedo, de explorá-lo manualmente, balançar para ver se faz barulho. A exploração do mundo real é limitada quando a criança fica presa às limitações sensoriais e de comportamento que a tela impõe”, explica.
Rotina diária
“A gente acabou juntando puerpério, que não estava saindo de casa, com a quarentena”, lembra a técnica de enfermagem, Cárita Santos, 26. “Foi extremamente exaustivo, só nós dois, sobrecarregava”, ressalta. A estratégia para cuidar do desenvolvimento da filha Alice, de 1 ano e 3 meses, foi estabelecer uma rotina diária: de manhã, abre o tapete, sobre o qual espalha os brinquedos. Depois, Alice se alimenta e tira um cochilo antes do almoço. Às 18h, Cárita abaixa as luzes, põe música clássica para tocar e prepara o banho com água quente. “Até mesmo para nós tem um nível de relaxamento.”
Convívio intenso
Em algumas famílias, a convivência intensa também permitiu que os pais acompanhassem mais de perto o desenvolvimento dos pequenos. No caso de Ennamúel Gabriel, de 10 meses, todos os cuidados ficam a cargo dos pais. “Como estou em teletrabalho até o fim da amamentação, quando ele completar um ano de idade, poderei acompanhar de perto o desenvolvimento do meu filho”, conta a mãe, a policial penal Fernanda Garcez, 39 anos.
Fernanda busca informação sobre como impulsionar o desenvolvimento de Gabriel nas redes sociais, em cursos on-line e em grupos no WhatsApp. “[Esses recursos] ajudaram muito. Mas o fato de não ter tido ajuda foi um intensivão de maternidade”, afirma. “Manter esse contato, mesmo que virtualmente, é uma importante ferramenta de enfrentamento da pandemia”, diz a psicóloga Camila Ferrari. “De um lado, o acompanhamento com o pediatra, e, de outro, a rede de apoio”, frisa.
Infância nas redes
As redes sociais também servem para que a família acompanhe a jornada de Dante, de 10 meses. Os pais criaram um perfil fechado no Instagram para publicar as peripécias do pequeno. “A gente se sente mais próximo da família que está longe”, explica a mãe, Isabella Cantarino, 25.
Entre as publicações estão as fotos de cada “mesversário” de Dante. Apesar de restritas a poucas pessoas, as festas são completas: tem docinho, salgado, bolo e decoração. Com o avanço da pandemia, a sonhada festa de 1 ano vai ficar para depois.
Cápsula do tempo
No livro do primeiro ano de Maria Fernanda, Deborah anotou sobre a pandemia. “Quando você veio ao mundo, vivíamos momentos difíceis, ficamos em isolamento”. Para Deborah, a filha e seus contemporâneos são pequenos guerreirinhos. “Bebês já são vencedores, estão superando a pandemia”, afirma.
A psicóloga Camila Ferrari diz que ainda não é preciso prever o tamanho do impacto da pandemia no futuro dessa geração. “O que a gente sabe é que, hoje, temos que plantar boas sementes de vínculo, afeto e proteção para preparar essas crianças para o amanhã, que será desafiador”.