Como as redes sociais e a dark web contribuem para exploração sexual infantil
Redes sociais e dark web: Anonimato e perfis falsos são algumas das maneiras de os criminosos agirem. Especialistas cobram responsabilização, pois imagens de exploração sexual infantil são lucrativas na internet
O caso do homem que sequestrou, dopou e estuprou uma menina de 12 anos com a ajuda de uma comparsa chocou o Distrito Federal nessa quinta-feira (29/6). Daniel Moraes Bittar abordou a criança com faca e Geisy de Souza a dopou com lenço embebido com clorofórmio. Depois, o criminoso levou a menina inconsciente dentro de uma mala para o apartamento em que morava, na Asa Norte. Lá, policiais encontraram a criança seminua e algemada, além de materiais pornográficos, objetos sexuais e câmeras. A Polícia Civil suspeita que Daniel faça parte de uma rede de pedofilia no Distrito Federal. A corporação apura a possibilidade da existência de outras vítimas. Segundo especialistas, a internet é terreno fértil para a prática de crimes sexuais — desde a tentativa de aliciamento até o compartilhamento de imagens de abuso e exploração sexual infantil.
A professora Lia Zanotta Machado, do Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília (UnB), explica que o meio digital oferece elementos que contribuem para a prática de atos criminosos desse tipo, como a possibilidade de manter o anonimato e da criação de perfis falsos. Além disso, a especialista chama a atenção para os jogos on-line, que disponibilizam chats para interação entre os jogadores. Nesses espaços, os criminosos se infiltram e passam a conversar com as crianças, sempre focando em interesses em comum. Quando ganham a confiança delas, os abusadores começam a agir, pedindo fotos, vídeos e até mesmo encontros.
Ainda segundo Lia Zanotta, as imagens de exploração sexual infantil, que são veiculadas em redes sociais, fóruns ou na dark web, são altamente lucrativas — fato que a especialista classifica como gravíssimo. Nesse sentido, a professora defende que as plataformas sejam responsabilizadas pelos conteúdos. “Há condições tecnológicas de interromper as atividades ilegais no meio digital”, diz. Além disso, outro fator observado como padrão em crimes sexuais é o fato de esses criminosos se articularem na internet, muitas vezes em grupos, como uma forma de “reforço” ou tentativa de “legitimar” as violências.
Segundo a Polícia Civil do Distrito Federal (PCDF), foram registrados 565 casos de estupro de vulneráveis em 2022. Até maio deste ano, a corporação contabilizou 146 vítimas no DF. A faixa etária com maior índice de vítimas é de 12 a 15 anos (35%); logo em seguida, aparece o recorte etário de 6 a 11 anos (27%). A maioria das vítimas é do sexo feminino: 84% dos casos. A PCDF reforça que a internet ainda oferece outro recurso para os criminosos, que é a deepfake. Trata-se de uma técnica de manipulação de vídeos por meio da inteligência artificial.
No início deste mês, a corporação deflagrou a Operação Mayra, que prendeu um homem acusado de praticar abusos sexuais contra pelo menos 10 crianças. “O criminoso aliciava as meninas pela internet, tanto no Facebook, como no Instagram, para conseguir fotos íntimas dessas crianças. E quando não conseguia, realizava montagens para simular a nudez da criança com os amigos dele. Os investigadores observaram, ainda, que o criminoso era extremamente organizado com seus arquivos de mídias, pois tinha pastas organizadas com o nome de cada criança. Em análise preliminar, a PCDF já identificou pelo menos 500 pastas com arquivos de possíveis vítimas em todo o Brasil”, explicou o delegado Filipe Campos, da Delegacia Especial de Proteção à Criança e ao Adolescente — DPCA.
De acordo com o Código Penal, a pena prevista para o crime de estupro de vulnerável é de oito a 15 anos de prisão. Já o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) define multa e pena de reclusão de quatro a oito anos para quem registrar, consumir ou comercializar imagens de abuso e exploração sexual infantil.
Alerta
Segundo dados da organização Safernet Brasil, que atua para promover o uso seguro da internet, o compartilhamento de imagens de abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes no meio digital cresceu 70% em 2023. “Sabemos que, do ponto de vista das vítimas, não é fácil romper a barreira do silêncio. A denúncia em si é simples de fazer, mas ainda há muitas barreiras a serem superadas, especialmente a necessidade de um maior fortalecimento da rede de proteção, que não consegue dar assistência adequada às vítimas”, afirma a psicóloga Juliana Cunha, diretora da Safernet.
Como uma maneira de enfrentar esse duro cenário, a organização sugere que o uso da expressão “pornografia infantil” seja substituído para “imagens de abuso e exploração sexual infantil”, pois pornografia sugere consentimento, enquanto que a distribuição e consumo de conteúdos de cunho sexuais envolvendo menores de idade é crime. “Toda imagem de abuso e exploração sexual infantil é o registro de uma violência real”, frisa a Safernet Brasil.
Diálogo e acolhimento
No caso do crime desta semana em Brasília, os dois acusados usaram a violência física para captar a vítima, mas é comum também o uso da internet para esse fim. Na avaliação da presidente do Instituto Liberta, Luciana Temer, o diálogo é a principal forma de prevenção. “A família precisa estar próxima dos seus filhos para acompanhar o movimento deles pela rede. Abrir um diálogo franco, falando de acordo com a faixa etária, que a violência sexual existe também na internet. A informação pode afastar o perigo de serem envolvidos por sedução à fazerem o que os criminosos desejam”, destaca.
Estar atento às mudanças bruscas de comportamento também é fundamental. Isolamento, agressividade e dificuldade em expressar sentimentos podem ser sinais de que a criança ou adolescente esteja em perigo e precise de ajuda. “Estes sinais devem ser sempre motivo para maior aproximação e tentativa de diálogo pelos familiares, oferecendo apoio, para ajudar. Crianças e adolescentes precisam falar sobre o ocorrido para interromper a violência e receber ajuda. Com informação, elas vão conseguir romper com o ciclo de violência – que é fortalecido pela impunidade gerada pelo silêncio. O silêncio é amigo do abusador”, argumenta Luciana.
As escolas e a sociedade como um todo também devem se mobilizar para enfrentar as violências sexuais contra crianças e adolescentes. Cabe lembrar que esses crimes podem ser praticados por pesssoas acima de qualquer suspeita, uma vez que cerca de 80% dos abusos ocorrem dentro de casa, por familiares da vítima. “O debate é urgente! Acreditamos que a solução passa pelo fortalecimento de crianças e adolescentes por meio da informação”, ressalta a presidente do Instituto Liberta.
“Por medo ou vergonha, no momento em que a violência acontece, as vítimas não conseguem pedir ajuda, então o caminho é a prevenção. Muitos pais têm dificuldade de tratar desses assuntos e a escola pode ser uma grande aliada, por ter profissionais que podem se preparar para isso. Aliás, a escola, já tem, por lei, obrigação de trabalhar a prevenção de todas as violências, inclusive da violência sexual e dos perigos que existem no ambiente digital”, acrescenta a especialista.
Em abril, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou a Lei nº 14.540/23, que criou o Programa de Prevenção e Enfrentamento ao Assédio Sexual à Violência Sexual e aos demais Crimes contra a Dignidade Sexual. A medida visa a criação de campanhas de combate a esses crimes em escolas e em outras esferas da administração pública. Entre os eixos de atuação, está a capacitação de professores e funcionários de unidade de ensino para identificarem as violências.
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