Como é ser mãe e estar presa no Brasil, com 5ª maior população carcerária feminina no mundo
Neste domingo de Dia das Mães, das 37,2 mil mulheres encarceradas no país, 12.821 estão separadas de seus filhos com até 12 anos. Isso significa que, de acordo com os últimos e desatualizados dados do Ministério da Justiça, referentes a 2020, cerca de 35% das mulheres presas no país são mães de crianças até essa faixa etária.
Os números de junho de 2021 divulgados pelo mesmo Ministério, por meio do Departamento Penitenciário Nacional (Depen), simplesmente não atualizam essa informação sobre maternidade. O órgão se limita a dizer que dentro dos estabelecimentos prisionais vivem 1.043 crianças, ainda não separadas de suas mães pelo Estado.
Somando homens e mulheres, o Brasil computa 820.689 pessoas aprisionadas. Boa parte dessas pessoas têm mães vivas – são elas, aliás, as protagonistas das filas de visitas do lado de fora dos presídios. Assim, o cárcere atravessa a experiência da maternidade de um contingente enorme de pessoas no país, o terceiro em que mais se prende no mundo. No ranking dos que mais encarceram mulheres, o Brasil está em quinto lugar.
De acordo com as pesquisadoras Alexandra de Almeida, Júlia Gimenes e Sofia Fromer do Programa Justiça Sem Muros do Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC), o encarceramento de mulheres mães, gestantes, lactantes e puérperas produz “inegáveis consequências negativas” na vida delas e das pessoas que as rodeiam.
Além dos riscos de falta de acesso à saúde, o cárcere causa, na visão das pesquisadoras, a “falta de garantia de manutenção do vínculo entre mães e seus filhos, o que afeta tanto o desenvolvimento das crianças como impõe restrições às condições materiais de reprodução da vida, pois são essas mulheres, em sua maioria, as principais responsáveis pelo sustento financeiro de sua rede familiar e pelas atividades de cuidado”.
O Marco Legal da Primeira Infância (Lei nº 13.257/2016) prevê que mulheres gestantes, responsáveis por pessoas com deficiência ou com filhos de até 12 anos podem ter a prisão domiciliar concedida.
O direito de mães cumprirem a pena em casa ganhou maior visibilidade quando ele foi concedido, em 2017, para Adriana Ancelmo, esposa do ex-governador carioca Sérgio Cabral (ambos condenados por corrupção).
Concedido nessa ocasião a uma mulher branca e rica, esse mesmo direito costuma ser negado às mulheres cujos perfis são alvo da seletividade racista do sistema penal.
Uma pesquisa feita pelo ITTC em 2021 identificou que o direito de estar em casa próxima dos filhos foi vetado para 30% das mulheres presas preventivamente e para 43% das condenadas a prisão definitiva.
Laços rompidos pelo Estado
Mulher negra e periférica de São Paulo, Patrícia Mendes ficou presa durante oito anos e quatro meses. Quando foi encarcerada, em abril de 2002, tinha 30 anos e vivia com a filha de 12 e os dois filhos, de sete e quatro anos. O pai das crianças morreu nesse mesmo período.
“Não raras vezes”, discorrem as pesquisadoras do ITTC, “o que vemos é que o encarceramento impacta a vida de outras mulheres de suas redes, como avós, tias, irmãs e mesmo filhas que acabam assumindo responsabilidades financeiras e das atividades de cuidados quando na ausência destas mulheres”.
Foi exatamente o que aconteceu com os filhos de Patrícia, cujos cuidados foram assumidos pela avó paterna. “Para ela, uma senhora que trabalhava em casa de família, foi difícil tomar conta de três crianças. Ela ficou muito chateada comigo por eu ter sido presa. Além disso, não tinha condições nem tempo de levar as crianças para me verem”, relata Patrícia.
Durante oito anos e quatro meses, Patrícia não viu seus filhos. Sequer recebeu notícia deles. “Fui do céu ao inferno. A saudade, a necessidade de estar com eles. Eu não podia, sabia que eu tinha uma longa estrada ainda para caminhar. Foi muito difícil”, suspira.
Dentro da prisão, se tornou evangélica. “Foi Deus que me sustentou naquele lugar, tanto espiritual como mentalmente. Senão eu tinha enlouquecido. Você vê muitas barbaridades ali dentro”, expõe.
O cárcere não acarretou apenas na ruptura do laço com as crianças. Patrícia nunca mais conseguiu encontrar sua mãe. A última vez que trocaram palavras, numa ligação telefônica corriqueira, foi poucos dias antes da sua prisão – há 20 anos atrás.
Com crises frequentes de epilepsia, dona Marlene de Fátima Mendes não tinha telefone e, com dificuldades de pagar aluguel, vivia mudando de casa. O contato se perdeu e, desde que foi liberta, Patrícia procura pela mãe em uma das cidades mais populosas da América Latina.
O reencontro, oito anos depois
Três meses antes de conseguir a liberdade, Patrícia cumpria pena em regime semiaberto no Centro de Progressão Penitenciária do Butantã. Saía às 4h para trabalhar em uma cafeteria em Pinheiros (zona oeste da cidade), que fazia uma parceria com a cadeia, e voltava às 19h.
Um dia pela manhã aguardava que a cafeteria abrisse quando viu uma moça caminhando pela rua. “Eu pensei não, não é minha filha… é parecida, mas não é. Eu não lembrava mais do rosto dela”, conta. “Camila?”, arriscou. “Mãe?”.
Foi assim, ao acaso, o reencontro. Já uma mulher de 20 anos, Camila explicou que não poderia conversar porque, a caminho do trabalho, no bairro de Santo Amaro, zona sul da cidade, só tinha dinheiro para uma condução e, se demorasse, perderia a integração do bilhete único. “Não filha, conversa cinco minutinhos com a mãe. A mãe te dá o dinheiro da outra passagem”. E assim fez.
A prosa rápida na calçada antes de cada uma entrar no serviço se repetiu algumas vezes. Para garantir a segunda passagem de ônibus da filha, Patrícia percorria, todos os dias, cerca de 15 km a pé de volta até o presídio.
A liberdade
Quando chegou o sonhado alvará de soltura no final de 2011, Patrícia Mendes atravessou os pesados portões de ferro, com seus poucos pertences em mãos, e ficou parada ali, das 9h às 15h. Não sabia para onde ir.
“A diretora da cadeia chegou a falar que se eu não saísse dali, ela me recolhia para dentro de novo. Eu falei ‘não, já vão vir me buscar’. Mas não tinha ninguém”, conta.
Para a casa da ex-sogra, onde estavam os filhos, não podia ir nem ligar. “Ela não aceitava e deixou bem claro”, descreve. Os números de telefone que tinha, depois de oito anos, já nem existiam mais.
Foi quando se lembrou do número de uma amiga que tinha feito no cárcere. “Ela falou ‘Patrícia, aguenta que eu estou indo’. Ela estava tão longe e era tão caro que ela pegou R$ 150 emprestado para pôr gasolina no carro e me buscar. Sou muito grata a ela por isso. Dali começou uma nova história para a minha vida”, relata.
Poucos meses depois Patrícia conheceria Railda Alves, uma das fundadoras da Associação de Amigos e Familiares de Presos (Amparar). Desde então, é também ativista da organização.
Com o tempo conseguiu contatar os filhos, que a visitavam escondidos da avó. Se conheceram de novo. Agora, durante a pandemia de covid-19, os três foram morar com a mãe.
“Marcas que não se apagam”
“O cárcere impõe um afastamento muito grande da família. Mesmo nos casos em que têm visita. A visita une, mata a saudade, está ali, dá uma esperança. Mas é cárcere também. É cadeia. É muito difícil”, opina Patrícia.
“Tenho uma conhecida do interior de São Paulo que ficou quatro anos presa. Ela saiu e ainda não consegue conviver com as filhas. Até hoje as meninas fogem dela”, ilustra Patrícia. “Porque não conseguem perdoar, ou entender ou aceitar. Não é simples, como falar ‘passou, agora estou aqui’. Não é assim”, explica.
“Tem situações que passamos lá dentro que só nós conhecemos a dor. E tem outras, que nossos filhos passam sem nós, que também só eles sabem. E que ficam. São marcas que não se apagam”, resume Patrícia.
Caminhos
As pesquisadoras do ITTC defendem ser urgente que magistrados cumpram as previsões legais permitindo, já nas audiências de custódia, que mulheres mães ou grávidas cumpram suas penas em prisão domiciliar. “É a principal medida a curto prazo para que laços familiares e comunitários sejam respeitados”, apontam.
Além do Marco Legal da Primeira Infância já citado, o direito é previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e em um Habeas Corpus Coletivo (de nº 143.641) impetrado em 2018 perante o Supremo Tribunal Federal.
As pesquisadoras argumentam, ainda, ser “fundamental o desenvolvimento e a implementação de políticas públicas de assistência social, transporte, moradia, trabalho, renda e educação com foco nas mulheres em cumprimento de prisão domiciliar e seus filhos”.
Entre as mulheres com quem conversou durante sua vivência aprisionada, Patrícia afirma não ter conhecido nenhuma que não tenha passado por uma série de violências até chegar ali. “Foi a sociedade que criou isso”, diz. “A maioria das mulheres já tinha sido estuprada”, exemplifica. “E são mulheres que têm sonhos. Inteligentíssimas. Que fazem a diferença”.
Um dia, contou para ilustrar o argumento, Patrícia presenciou algo que nos mais de oito anos de cadeia nunca tinha visto. Foi no Dacar IV, presídio feminino que depois foi desativado e transformado em uma das unidades do Centro de Detenção Provisória de Pinheiros, zona oeste da capital paulista.
“Estava tão precário, o banheiro, tudo… Precário para viver. Cada ala tinha 500 pessoas, eram mais de mil mulheres ali, sofrendo. Teve uma briga e o Batalhão de Choque se posicionou para entrar. Quando o Choque entra, destrói tudo mais ainda”, rememora.
E então, duas mulheres se levantaram e se posicionaram em frente aos agentes de segurança. “Eram duas donas de casa que foram presas por causa dos maridos. Foram conversar com eles. Jogando um papo aberto. Uma tensão… Depois de meia hora no argumento, eles recuaram. Eu fiquei… admirada. Com as palavras, a atitude delas”, diz Patrícia. Quando o Choque saiu, as duas donas de casa foram aplaudidas de pé.
Enquanto concedia a entrevista, um dos filhos de Patrícia entrou no quarto. “Olha, esse aqui é Claudio”, apresentou orgulhosa. Nesse dia das mães, nenhuma grade os separa.