Como fazer cidade e infância se reencontrarem em meio a ruas hostis
Rua é lugar de criança? Na opinião de educadores, arquitetos e urbanistas, é, sim. Ou deveria ser. As crianças, no entanto, estão confinadas. Especialistas e acadêmicos têm constatado que elas estão passando muito tempo dentro de casa e dos condomínios. Ficou mais difícil encontrá-las brincando ou andando sozinhas pelas ruas das médias e grandes cidades do Brasil.
Em São Paulo, maior metrópole do país, a hostilidade das ruas e o medo dos pais andam juntos. “Minha filha mais velha diz que eu faço dela uma prisioneira”, afirma a doméstica Fernanda Inocêncio dos Santos, 29, moradora do centro de São Paulo. Com medo da violência, ela não deixa as três filhas – de 12, oito e seis anos – saírem sozinhas de casa.
A dentista Juliana Saraiva, 40, moradora da zona norte paulistana, saía de casa sem companhia adulta aos dez anos para ir à padaria e ao mercado. No entanto, o plano para seu filho Vitor, 10, é outro. “Ele só sairá sozinho com uns 14 anos, mas será muito bem orientado e treinado. E se houver alguma possibilidade de levá-lo e buscá-lo, farei isso com absoluta certeza.”
Além da violência, o trânsito torna as ruas pouco amigáveis. Em movimento ou estacionados, os veículos tomam espaço. Além disso, provocam acidentes e poluem. Entre os acidentes, os de trânsito, incluindo atropelamentos, são os mais letais para crianças de até nove anos. Em 2012, eles representaram um terço das mortes por acidentes nessa faixa etária, de acordo com o Ministério da Saúde.
Não está fácil
specialistas de ofícios diferentes que trabalham em cima dessa questão divergem sobre a estratégia dos pais. Para a arquiteta e urbanista Cibele Taralli, professora da FAU-USP (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo), há exagero no controle dos filhos. "A maioria das crianças de todos os meios sociais é confinada em casas, condomínios e shoppings. Os pais estão superprotegendo. O medo do perigo é exacerbado. Temos uma estrutura funcionando nas cidades, mas os problemas de violência vistos na TV estão pesando mais do que as qualidades que as cidades têm", afirma.
Já para a psicóloga Beatriz de Paula Souza, do Instituto de Psicologia da USP, onde coordena o serviço de Orientação à Queixa Escolar, o medo dos pais procede. “As famílias estão cobertas de razão em ter medo. Vivemos um espaço urbano muito hostil.”
O fato é que não está fácil ser criança. Se no espaço público pode haver perigo para ela, em certos espaços privados o incômodo parece ser representado por ela, que recebe sinais do quanto não é bem-vinda. O movimento Childfree, que nasceu na América do Norte para defender adultos que não desejavam ser pais, deu um passo à frente para reivindicar, inclusive no Brasil, a ausência de crianças em lugares como restaurantes e hotéis, alegando que muitas não sabem se comportar e perturbam.
Crianças indóceis
O mau comportamento pode ter relação com o confinamento. Depois de notar um aumento das suspeitas de hiperatividade e déficit de atenção, entre outros transtornos, os profissionais do Serviço de Orientação à Queixa Escolar, ligado ao Instituto de Psicologia da USP, fizeram em 2016 um levantamento com as crianças atendidas – todas de famílias de baixa renda e de classe média baixa.
Os resultados preliminares indicam que a maioria vive confinada. “As crianças ficam muito dentro de casa. Só três de 26 crianças pesquisadas faziam atividades físicas e lúdicas fora do horário da escola”, relata Beatriz de Paula Souza, coordenadora do programa. “Se as crianças vivem muito confinadas, elas chegam ávidas de espaço na escola, mas não podem desfrutá-lo. Aí ficam indóceis na sala de aula.”
“A criança passa a ser vista como terrível e ocupa o lugar de ‘criança problema’ na escola, entre os amigos e na família. Isso é dramático e cruel”, prossegue a psicóloga. “A criança está gritando pela saúde dela. Ela precisa ser atendida como saudável e não tratada com medicações pesadíssimas.”
Liberdade faz bem
“A liberdade que as crianças tinham de fazer explorações com seus pares não existe mais. A gente precisa encontrar saídas para estimular a autonomia delas. Na infância, a necessidade de movimento e expansão é evidente”, afirma Isabel de Barros, pesquisadora do programa Criança e Natureza do Instituto Alana.
Na USP, os psicólogos resolveram tirar as crianças do confinamento e acompanhar o comportamento delas em espaços abertos da Cidade Universitária. “Nas atividades ao ar livre, elas se cansavam depressa, não tinham resistência física, além de terem pouca coordenação. É assustador como esse modo de vida [em confinamento] é doentio para o desenvolvimento físico, psíquico e intelectual”, comenta Beatriz de Paula Souza.
Mas os resultados trouxeram alento. “As crianças mudam completamente em ambientes abertos. Relaxam, concentram-se e pensam muito melhor”, conta Beatriz. Empolgada com a experiência, a equipe do serviço mudou a própria rotina e passou a fazer reuniões de trabalho nos gramados da USP.
Caronas para caminhar
A iniciativa do Instituto de Psicologia de realizar atividades infantis em espaços públicos está longe de ser a única. “As crianças estão mais enclausuradas, mas também há uma redescoberta do tema e a busca por inclusão no espaço público”, diz a arquiteta e urbanista Graziela Nivoloni, que realiza na FAU-USP a pesquisa de mestrado “Situações Lúdicas para o Brincar no Espaço Urbano”.
Uma ação elogiada e apontada como referência é o Carona a Pé, criado em 2015 por uma professora e mães de alunos do Colégio Equipe, em Higienópolis, bairro de elite da região central de São Paulo. A ideia é simples: grupos de crianças são formados para irem à escola a pé, com adultos se revezando na supervisão. O programa acaba de ser replicado em uma escola particular de educação infantil do Pacaembu, bairro vizinho.
Projeto semelhante, o Caminho Escolar, foi feito entre 2011 e 2013 na favela Paraisópolis, na zona sul, coordenado pela arquiteta e urbanista espanhola Irene Quintáns, com apoio da prefeitura. Em Bogotá, capital da Colômbia, isso já virou política pública. A administração local e as comunidades são parceiras em programas para as crianças irem a pé ou de bicicleta à escola.
“As crianças não ficam desacompanhadas em Bogotá. Elas vão com adultos capacitados. Os grupos escolhem os trajetos, que são chamados de rotas de confiança. A prefeitura vistoria o trajeto e pode fazer melhorias nele. A definição dos pontos de encontro também serve de impulso para intervenções de zeladoria”, afirma Irene. “Os temores dos pais são compreensíveis, mas com diálogo e medidas de segurança você vai eliminando os riscos e os medos. Os grupos criam segurança a sua volta.”
O poder das crianças
A ideia de que a apropriação do espaço público gera identificação social e de que as crianças têm importância nesse processo foi adotada em um grande trabalho iniciado no fim da década de 1940, na Europa. “No pós-guerra, a cidade de Amsterdã estava degradada, e o arquiteto Aldo van Eyck decidiu projetar centenas de playgrounds. Foi uma oportunidade de devolver a cidade às pessoas e de refazer cicatrizes urbanas”, lembra Graziela Nivoloni.
A capital da Holanda tem outra história marcante na relação entre crianças e a cidade. Na década de 1970, meninos e meninas fizeram protestos pela retirada de carros e contra os atropelamentos nas ruas congestionadas do bairro De Pijp, uma prova da capacidade de participação das crianças na vida urbana.
Dar voz às crianças é uma das bandeiras de quem estuda o tema. “Defendo uma inversão da lógica do planejamento urbano. Proponho que ele deva partir daquilo que seria bom para a criança. É preciso escutar as crianças e incorporar as demandas delas. O que é bom para criança é bom para todo mundo”, afirma o arquiteto e urbanista Samy Lansky, mestre e doutor em Educação pela UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais).
“Precisamos mudar a ideia de que o arquiteto deve definir o projeto. Devemos entender melhor como as crianças ocupam o espaço e pensar em premissas de projetos que não subestimem a capacidade delas”, frisa Graziela a respeito das áreas de lazer para as crianças. “Os projetos podem ser muito simples. A criança inventa brincadeiras e situações.”
Passa de ano?
Numa rara pesquisa de opinião com crianças e adolescentes sobre a qualidade de vida na cidade de São Paulo, feita em 2015 pela Rede Nossa São Paulo e pelo Ibope, elas mostraram uma visão mais positiva que os adultos. Mesmo assim, deram notas abaixo da média para aspectos como segurança, meio ambiente e mobilidade, incluindo o respeito aos pedestres.
“Os adolescentes são ainda mais críticos sobre a mobilidade, pois a maioria deles já pode pegar transporte público por conta própria e conhecer outros tipos de barreiras para a circulação. E a questão da segurança passa justamente pela sensação de que a cidade não os acolhe”, afirma a cientista social Marisa Villi, diretora da Rede Conhecimento Social e membro do grupo Crianças e Adolescentes da Rede Nossa São Paulo.
A rua mais amigável
Autor da tese “Na cidade, com crianças: uma etnografia especializada” sobre uma área de fronteira social em Belo Horizonte, Lansky aponta elementos para tornar uma cidade mais amigável para as crianças. “Precisa ter calçadas adequadas à circulação do pedestre, espaços de permanência, com bancos e arborização adequada, lixeiras para que a cidade seja limpa, além de espaços para brincar, correr e aprender a andar de bicicleta.”
Nesse sentido, a construção de ciclovias e restrições à circulação e ao estacionamento de carros são tidas como medidas positivas. A implantação de ruas de lazer aos domingos é um passo importante. Também é fundamental, acrescenta Lansky, manter a cidade bem sinalizada, bem iluminada e preparada para a acessibilidade.
O arquiteto cita a ativista Jane Jacobs, ícone de lutas urbanas em Nova York no século 20, para lembrar que os espaços destinados às crianças não podem ser tão segregados. Para Jacobs, defensora de bairros que misturam casas com comércio e serviços, o lugar mais adequado para as crianças brincarem seriam as calçadas largas e com algum movimento, onde estariam à vista de adultos que se revezariam para zelar pela segurança delas.
Pela cidadania
Entre educadores e urbanistas, é corrente a defesa do acesso à cidade como ponto fundamental para a formação da cidadania. “As crianças necessitam ser educadas para a vida, para a cidadania, para poderem brincar umas com as outras livremente, conhecer e usufruir os espaços da cidade. Se não podem utilizar o espaço público, como se tornarão cidadãs? Como podem respeitar esse espaço se o desconhecem?”, questiona a arquiteta e urbanista Claudia Oliveira no livro “O Ambiente Urbano e a Formação da Criança”.
“O respeito às diferenças vem com a convivência no espaço público. É lá que a gente vê outras referências, alarga os horizontes e aprende a respeitar. Como construir comunidades mais pacíficas se as pessoas não convivem? Pode ser difícil e tenso, mas a convivência no espaço público gera empatia e respeito”, ressalta Raquel Franzim, assessora pedagógica do Instituto Alana.
Jane Jacobs escreveu no livro “Morte e Vida de Grandes Cidades” que é só nas ruas, em contato com adultos, que as crianças podem aprender “o princípio fundamental de uma vida urbana próspera” ao ver que “pessoas sem laços de parentesco ou de amizade íntima ou responsabilidade formal” tomam a iniciativa de assumir um pouco da responsabilidade pública por elas.