COVID-19: estudo mostra como as crianças compreendem e sentem a pandemia

Veículo: Estado de Minas - MG
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Pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) desenvolveram um estudo para entender como as crianças enxergam a pandemia da COVID-19. A pesquisa  ‘Infância em tempos de pandemia: experiências de crianças da Grande BH’ começou em junho de 2020 e acaba de gerar o primeiro relatório.

Ele traz observações e alertas sobre o impacto do afastamento das atividades escolares presenciais como medida de prevenção ao contágio pelo novo coronavírus.

As análises são fruto da participação de mais de 2.200 voluntários de 8 a 12 anos, moradores da Região Metropolitana de Belo Horizonte.

Para os pesquisadores, as políticas destinadas às crianças devem levar em consideração os pontos de vista delas, identidades e contextos familiares.

“Ouvir as crianças sobre suas vivências traduz nosso compromisso ético e político de contribuir para reconhecê-las como sujeitos plenos e capazes de compreensão da vida social em toda a sua complexidade. Esse compromisso se torna ainda mais importante neste contexto de pandemia, pois as crianças são um dos grupos mais afetados e com menor visibilidade e espaços de fala, como já indicam estudos nacionais e internacionais”, explica a professora Iza Rodrigues da Luz.

Ela coordena o trabalho ao lado de Isabel de Oliveira e Silva e Levindo Diniz Carvalho, também professores da Faculdade de Educação (FaE) da UFMG.

Emoções e sentimentos diante da pandemia 

A proposta foi desenvolvida pelo Núcleo de Estudos e Pesquisa sobre Infância e Educação Infantil (Nepei) da FaE para analisar as rotinas, as relações sociais e as experiências das crianças com foco nas suas emoções e sentimentos diante da pandemia de COVID-19.

O grupo também tentou compreender como as desigualdades sociais, territoriais, raciais e de gênero repercutiram nas diversas experiências dos participantes.

Por isso, a pesquisa privilegiou o envio do questionário a estudantes das redes públicas de ensino e a crianças cujas famílias fazem parte do círculo de lideranças comunitárias: 64,4% deles frequentavam escolas públicas, e 30,6% estudavam em instituições particulares.

“A escuta das crianças também tem como finalidade auxiliar na garantia de seus direitos. Em um país com enormes desigualdades sociais como o nosso, as crianças das camadas populares têm mais chances de ter seus direitos violados. Poder chegar a elas e conhecer o que estão vivendo neste momento é uma ação fundamental tanto para compreender melhor suas realidades quanto para construir ações e políticas direcionadas a elas. Deve-se ressaltar também a relevância de desconstruir preconceitos de diversas ordens enfrentados por essas crianças”, justifica a pesquisadora.

 

Idades, raças, vulnerabilidades

Entre 11 de junho e 15 de julho de 2020, um questionário on-line com questões abertas e fechadas foi disponibilizado aos participantes.

As crianças enviaram desenhos, fotografias e mensagens em um ambiente virtual, que podem ser vistos no mural criado no site da pesquisa.

Na segunda fase do projeto, realizada entre agosto e dezembro, foram feitas entrevistas com 33 dos voluntários que participaram da primeira etapa.

Foram ouvidas crianças de 33 municípios. A maior parte (45,5%) vive em Belo Horizonte, seguida por Lagoa Santa (7,5%), Ribeirão das Neves (7,4%) e Contagem (6,7%).

O estudo constatou que 55,5% das crianças moram em territórios de baixo risco de vulnerabilidade territorial, 29,2% na categoria média e 11,1% vivem em territórios de alta vulnerabilidade.

Os pesquisadores destacam os resultados da autodeclaração racial, que coincidem com as informações do censo escolar de 2019 quanto ao perfil das crianças da educação básica: 45,4% são pardas, 39,8%, brancas e 9,2%, pretas (no censo escolar foram, respectivamente, 48,3%, 27,1% e 6,6%).
Houve ainda 28 autodeclarações de crianças amarelas, 12 de indígenas e 27 da categoria “outras cores”.

Com base nesses resultados, o grupo da UFMG traçou uma análise do acesso a computador, tablet, celular ou internet em casa. Mais crianças que se autodeclararam brancas afirmaram ter acesso a essas ferramentas do que as pardas e as pretas, respectivamente.

Entre as que não têm acesso à internet, 11,1% moram em locais de alta vulnerabilidade, dado semelhante ao do acesso ao celular: 11,6%.
Já em relação ao computador ou tablet, de maneira geral, as crianças da pesquisa têm pouco acesso.

 

“As informações construídas com a pesquisa ainda estão sendo analisadas de modo a podermos ampliar a compreensão de como as desigualdades afetaram as vivências das crianças. De todo modo, as análises iniciais já evidenciam uma diferença de acesso a equipamentos e à internet entre as crianças que vivem em territórios de alta, média e baixa vulnerabilidade. É uma informação fundamental para pensar políticas relacionadas à educação, visto que o ensino remoto tem sido um meio de as escolas chegarem até elas”, afirma Iza Rodrigues.

 

Consciência e visão poética

Uma das perguntas do questionário estava relacionada ao cumprimento ou não do distanciamento social. A maioria das crianças (89%) respondeu estar obedecendo o isolamento social.

Desse percentual, 10% cumpriam o afastamento seguindo as ordens de adultos, 30% por senso de coletividade e solidariedade e 30% por compreensão dos riscos.

Para os pesquisadores, ficou evidente que a maior parte das crianças tem clareza sobre as consequências da situação atual.

“Temos sido surpreendidos e sensibilizados pelas crianças ao longo de todo o trabalho”, revela a professora, que reconheceu solidariedade geracional por parte dos voluntários.

“Boa parte das crianças participantes evidenciou conhecimento dos diversos impactos da pandemia na sociedade, demonstrando preocupação com o desemprego de familiares e conhecidos, adoecimento dos familiares e uma consciência da necessidade de cumprimento ao isolamento social para evitar a disseminação da doença e garantir a vida das pessoas, citando especialmente seus avós e outros grupos de risco.”

Segundo Iza Rodrigues, as respostas também chamaram a atenção pelas formas poéticas de tratar de assuntos complexos e delicados.

“Podemos ver isso nos desenhos e fotografias enviados. Em seu desenho Meu aniversário em julho, um menino de 9 anos revela sua solidão. Em mensagem, uma menina de 10 anos escreve que ‘a doença afasta e aproxima pessoas’, o que evidencia o paradoxo da pandemia, uma vez que boa parte das crianças sente bastante a ausência de amigos e familiares, mas, ao mesmo tempo, vê com alegria o estreitamento da convivência com os pais”, exemplifica.

Processos de escuta

Além de conseguir dados importantes para compreender a situação das crianças neste momento de pandemia, os autores utilizaram o estudo para fazer, ao fim do relatório, uma série de recomendações ao poder público e à sociedade.

Iza ressalta que a compreensão refinada e sensível das crianças sobre o contexto da pandemia e os seus pontos de vista podem auxiliar a construir ações e políticas específicas para elas.

Os pesquisadores acreditam que é urgente a criação de processos de escuta, que podem ser feitos, como explica o relatório, por meio de rodas de conversa, assembleias, entrevistas individuais e fóruns.

Esses processos também podem ser feitos com base na análise das suas diferentes formas de expressão, mediadas pela imaginação.
Para os coordenadores, o conselho vale também aos pais: “(Há uma) grande valorização da convivência familiar por parte das crianças. Reiteramos a necessidade de dedicar atenção e ter disponibilidade para escutar filhas e filhos”.

O relatório pede atenção ainda à pluralidade de infâncias e, consequentemente, de acessos a meios digitais. O grupo indica a urgência de considerar gênero, contextos sociais e raciais das crianças.
Para isso, sugere maior articulação da atuação das unidades básicas de saúde com as escolas; levantamento das condições sociais das famílias; mapeamento dos equipamentos públicos; organizações da sociedade civil e atores que compõem a rede de proteção social, com o objetivo de construir ações articuladas e realização sistemática de reuniões entre os diferentes setores.

“Destaco também a importância de considerar que o ensino remoto é algo emergencial e não substitui a convivência presencial e continuada das crianças nas escolas. Apresentamos na nota várias recomendações que tratam dessa questão e podem auxiliar a minimizar os prejuízos vividos pelas crianças por conta dessa modalidade de ensino”, enfatiza a professora.

Entre os voluntários que fizeram atividades escolares em ensino remoto, os pesquisadores identificaram impactos negativos sobre sua saúde física e mental decorrentes do cansaço, da ausência de interação, do excesso de atividades e das dificuldades de aprendizagem.
A falta de convivência afetiva e lúdica com as outras crianças e profissionais da escola foi destacada nas respostas.

As últimas recomendações dos pesquisadores da UFMG são direcionadas às instituições de ensino, que deverão considerar reformulações de conteúdos, recursos, estratégias e tempos durante o ensino remoto.

De acordo com eles, as rotinas das atividades não devem reproduzir artificialmente o ambiente escolar. E é necessária uma preparação para o acolhimento às crianças na volta às aulas presenciais, com a aceitação de que os sentidos da escola para professores, estudantes e famílias devem superar a visão restrita de transmissão de conteúdos.

Os pesquisadores defendem que ela precisa ser “um espaço de aprendizagem de uma ética fundada na valorização do cuidado e do respeito mútuo.”

Temas deste texto: Ciência - Comportamento - Cultura - Epidemias