Crianças e adolescentes brasileiros sob risco de mais exposição a apostas online

Veículo: Revista Fórum
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Exposição a apostas online: marco legal para a indústria de jogos eletrônicos, que inclui jogos de fantasia, está na pauta do Congresso. Há polêmica entre especialista e crítica de representante do setor por expor público jovem e infantil a jogatina em dinheiro

exposição a apostas online
Foto: Getty Images

A participação de crianças e adolescentes em jogos de apostas online pode ser extremamente prejudicial. A prática apresenta vários perigos, entre eles vício, problemas financeiros, impacto no desempenho escolar, estímulo a comportamento criminoso, riscos à saúde mental e exposição a conteúdo inadequado.

A Fórum conversou com o médico psiquiatra, especialista em psiquiatria da infância e adolescência pelo Hospital de Clínicas de Porto Alegre da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (HCPA/UFRGS), Daniel Spritzer, sobre os perigos oferecidos pelos jogos de fantasia, ou fantasy games, para o público infantil e adolescente.

Spritzer, que é mestre e doutor em Psiquiatria e Ciências do Comportamento pela UFRGS e coordenador do Grupo de Estudos sobre Adições Tecnológicas (GEAT), explicou que essa categoria de jogo tem se tornado cada vez mais popular já há alguns anos. É um mercado em pleno crescimento, em especial entre o público adolescente.

Jogos de fantasia similares a jogos de azar

Os jogos de fantasia, prossegue o especialista, têm evoluído graças aos avanços tecnológicos. Isso facilitou a incorporação nessa categoria de mecanismos similares aos jogos de azar e de apostas online. Nessa dinâmica, muitos usuários desses aplicativos e plataformas vivenciam uma altíssima exposição e acabam correndo riscos que até desconhecem.

“Sem falar na questão toda da publicidade, onde as pessoas são inundadas com anúncios que têm como objetivo principal tentar diminuir a percepção de risco sobre as apostas ou sobre os fantasy games em geral e tentar aumentar a ideia de controle que as pessoas acham que tem em relação a esse comportamento”.

Outro aspecto apontado pelo especialista é que muita gente, principalmente as que têm mais interesse por esportes, com destaque para o futebol, acabam usando os jogos de fantasia como uma extensão da experiência esportiva.

Muitos desses fãs de esporte, observa Spritze, relatam que aliar os jogos de fantasia ao esporte que curtem deixa a competição esportiva mais emocionante. Alguns, inclusive, consideram difícil parar de apostar porque a experiência passa a não ter a mesma graça.

Nesse ciclo, o usuário pode testar o conhecimento esportivo e ainda tem a chance de ganhar alguns prêmios em dinheiro. Há duas maneiras principais de apostar em fantasy games, com ou sem dinheiro. É possível participar de uma liga, que na verdade são campeonatos, torneios mais longos; ou apostar em eventos de resultados diários.

“Em  jogos de fantasia que têm resultados mais diários, você tem muito mais semelhanças com os jogos de azar, como o tipo de publicidade e as recompensas”.

Jogos de fantasia estimulam jogatina

Spritzer cita que há alguns estudos que já mostram que participar de fantasy games, mesmo os gratuitos, está associado a uma maior probabilidade de apostar em esportes em geral, comparado com pessoas que não participam dessa modalidade de jogo.

Ele explica ainda que os jogos de fantasia funcionam como um mediador entre a pessoa que tem interesse por esporte e as pessoas que apostam em esporte. Há todo um caminho entre simplesmente se interessar em esporte e apostar em esporte, que é facilitado pelos fantasy games.

O psiquiatra alerta que, no público adolescente, os que participam regularmente em fantasy games, têm mais chance de acabar apostando em esportes e em outras modalidades de jogos de azar e de terem mais problemas relacionados com esse comportamento, com os jogos de aposta em geral.

Estudos alertam para riscos

No Brasil, faltam dados sobre os efeitos dos jogos de fantasia entre usuários crianças e adolescentes. Mas há levantamentos feitos em outros países, como Estados Unidos, Reino Unido, Canadá e Espanha, que podem sinalizar a extensão do problema.

Como o estudo conduzido pela Unicef, agência da Organização das Nações Unidas (ONU) para a infância, que revela uma alta adesão de jovens ao ato de apostar e mostra que 22% dos adolescentes entrevistados afirmam que jogaram pela primeira vez aos 11 anos ou menos, e a maioria começou a jogar aos 12 anos ou mais (78%).

A pesquisa “A Study of Adolescents’ Knowledge, Attitude and Practise to Gambling”, por meio de uma metodologia quantitativa, entrevistou 1.007 crianças e adolescentes de 10 diferentes cidades do estado da Geórgia, nos EUA, para coletar dados sobre o vício em apostas dessa faixa etária.

O estudo trata do termo “Gambling”, que seriam jogos cujo resultado depende total ou parcialmente do acaso, no qual há a possibilidade de prêmio em dinheiro, onde as apostas esportivas online se enquadram.

Dos dados sobre “Gambling” coletados, 18% de todas as apostas na pesquisa, 18% é relacionado à Bets e apostas esportivas, onde quatro em cinco adolescentes não têm informações sobre ludopatia (vício em jogos de azar).

Além disso, 46% dessas crianças e adolescentes não contam aos seus pais sobre o hábito de apostar, onde somente um quarto compartilha essa informação aos parentes. Ou seja, muitos filhos apostam sem o conhecimento de seus pais e acabam evitando ações contra a ludopatia nessa faixa etária.

Epidemia de vício em apostas

Já no Reino Unido, dados da Comissão de Jogos de Azar (Gambling Comission), de novembro de 2022, mostram a relação entre jovens e jogos de azar, em uma pesquisa quantitativa que ouviu 2.559 jovens entre 11 e 16 anos.

A definição de jogos de azar na pesquisa segue o padrão utilizado no estudo da Unicef, no qual desses jovens, 50% já teve alguma experiência com apostas, e 31% é um apostador ativo. Desses apostadores, 2,4% se encontram em risco de ludopatia e 0.9% já tem um problema de apostas compulsivas.

No Canará, o Centro Internacional para Problemas de Jogo Juvenil e Comportamentos de Alto Risco, uma iniciativa da Universidade McGill, em Montreal, publicou um estudo que revela que entre 60% e 80% de estudantes de ensino médio já fizeram algum tipo de aposta, e entre 4% e 6% se consideram apostadores compulsivos.

Outro dado revela que entre 6% e 8% se consideram sob risco de desenvolver algum transtorno compulsivo patológico. Também foi revelado que aproximadamente 4% e 5% dos jovens, de idades entre 12 e 17 anos, apresentam pelo menos um critério de ter ludopatia, onde começam a perder controle sobre o comportamento nas apostas.

Na Espanha, um artigo produzido pela Universidade de Valência, publicado na Fundación la Caixa, a partir de um estudo conduzido com 1.934 estudantes do ensino fundamental e médio em 26 escolas valencianas, também deixa à mostra os problemas dos jogos de fantasia entre esse público infantil e jovens.

O resultado do levantamento aponta que parte majoritária das apostas online são de apostas esportivas, entre as quais 14,5% dos garotos, e 7,1% das garotas que apostam, estão em risco de desenvolver alguma patologia compulsiva, e 1,9% dos garotos e 0,5% das garotas já são viciadas. Além disso, os sport bets têm 51,87% potencial de vício patológico.

Perigos podem ser turbinados no Brasil  

No Brasil, a questão ganhou um agravante com a tramitação de uma matéria que caso aprovada vai deixar crianças e adolescentes ainda mais expostos a riscos da jogatina pela internet.

Trata-se do Projeto de Lei (PL 2796/2021), de autoria de Kim Kataguiri (União Brasil-SP) aprovado pelo plenário da Câmara em outubro de 2022 e que agora está em tramitação no Senado e que pode ser votado nesta semana, provavelmente, na próxima quinta-feira (21). Caso avance e vire lei, essa matéria deixará crianças e adolescentes completamente expostos ao ambiente de apostas online.

Um dos problemas dessa proposta apresentada por Kataguirri, um dos líderes do Movimento Brasil Livre (MBL), que se auto-define ‘liberal na economia e conservador nos costumes”, foi a inclusão de um jabuti escandaloso. Durante a tramitação na Câmara o texto incluiu os jogos de fantasia que sequer são considerados jogos eletrônicos pelo setor de games.

Marco legal capenga e ultrapassado

Em tese, a matéria institui o marco legal para a indústria dos jogos eletrônicos. Na prática, a inclusão dos jogos de fantasia, na manobra conhecida como jabuti, no texto é uma polêmica. Outro aspecto problemático é que a proposta do parlamentar de São Paulo já nasce ultrapassada e com ares de anos 1990.

O presidente da Associação Brasileira das Desenvolvedoras de Games (Abragames), Rodrigo Terra, em entrevista à Fórum ressalta as contradições desse texto em tramitação no Legislativo.

Terra comenta que os jogos de fantasia são altamente controversos. Pela experiência internacional, por exemplo, há diferentes interpretações. Nos EUA, cada estado tem um entendimento diferente. Em outros países, uns classificam como jogos de azar, outros criam uma legislação própria e ainda há os que simplesmente os proíbem.

“A gente tem um movimento muito controverso. E isso foi enxertado num marco legal que já era o que eu tenho classificado como capenga, ficou pior, porque você enxertou uma coisa altamente duvidosa tentando se disfarçar de videogame”.

Outra crítica feita pelo presidente da Abragames foi o processo pouco democrático de construção do texto. Ele relembra que não houve diálogo em profundidade com representantes do setor, a exemplo da entidade que preside. O resultado é que a matéria prestes a ser votada pelo Senado não contempla os temas que são importantes para o desenvolvimento do setor de games no Brasil.

Profissões relacionadas a games deixadas de fora

Mais um problema apontado por Terra é que o texto em tramitação privilegia apenas uma das diversas profissões envolvidas no desenvolvimento de um game, no caso a de programadores.

“Existem outras profissões dentro do mercado de tecnologia que não estão embarcadas, as profissões do mercado de jogos, porque você não consegue fazer jogos só programando, você tem arte, você tem som, você tem processos, você tem uma série de outras profissões diversas”.

Ele cita que várias atividades envolvidas para o desenvolvimento de jogos eletrônico são regulamentadas pelo Ministério do Trabalho. Da mesma forma, há mais de 10 anos, vários cursos universitários, técnicos e livres, os técnicos foram homologados pelo Ministério da Educação e ficaram de fora de um projeto de lei que se propõe a ser um marco legal para o setor.

Terra conclui que o debate sobre o marco legal para o setor de games está interditado e que a sensação é de que a pauta foi blindada por motivos que permanecem obscuros. Ele ressalta ainda que o PL de Kataguirri não é reconhecido pelo setor de games e não traz benefícios para o consumidor.

“Os fantasy games entraram ali de uma forma duvidosa, e são um segmento que realmente precisa exaurir a discussão que é aposta, porque se assemelha muito com uma aposta ao invés de um videogame, se assemelha a um jogo de azar”.

Para Terra, um marco legal moderno para o setor de games precisa partir do entendimento predominante há mais de 10 anos: jogo eletrônico não se limita a software e é um ativo cultural e do audiovisual importante para a sociedade.

Riscos de jogos de fantasia para crianças e adolescentes
  • Vício: Crianças e adolescentes são mais vulneráveis ao desenvolvimento de vícios, e os jogos de apostas podem ser altamente viciantes. O vício em jogos de azar pode ter sérios impactos na saúde mental, nas relações familiares e na vida acadêmica.
  • Problemas financeiros: Menores de idade geralmente não têm renda própria e podem usar o dinheiro de seus pais ou outras fontes para jogar. Isso pode levar a problemas financeiros significativos para a família e para o próprio jovem.
  • Desempenho escolar: O vício em jogos de apostas online pode distrair os jovens de seus estudos e afetar negativamente seu desempenho nos estudos.
  • Comportamento criminoso: Alguns adolescentes podem recorrer a atividades ilegais, como roubo, para financiar seu vício em jogos de azar.
  • Problemas de saúde mental: O estresse associado a perdas financeiras e o isolamento social decorrente do vício em jogos de azar podem contribuir para problemas de saúde mental, como ansiedade e depressão.
  • Exposição a conteúdo inadequado: Muitos sites de apostas online têm conteúdo inadequado para menores, incluindo publicidade agressiva e linguagem inapropriada.
  • Risco de fraude e abuso: Crianças e adolescentes podem ser mais suscetíveis a fraudes online e abuso por parte de outros jogadores.

Para evitar esses perigos, é fundamental que os pais estejam cientes das atividades online de seus filhos e monitorem seu uso da internet. Além disso, as autoridades reguladoras e as empresas de jogos de azar online têm a responsabilidade de implementar medidas para proteger os menores de idade, como verificações rigorosas de idade e proibição de anúncios direcionados a crianças e adolescentes. A educação sobre os perigos dos jogos de apostas online também desempenha um papel importante na prevenção.

 

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