Crianças e adolescentes são alvo de vários tipos de violência diariamente
Sem voz, sem defesa, sem acesso à plenitude dos seus direitos, a parcela da população que deveria ser mais cuidada e protegida sofre violações cotidianamente. Vulneráveis, crianças e adolescentes são alvo de todos os tipos de violência. Espancamentos, torturas, humilhações, abusos sexuais, negligência. Os sofrimentos são múltiplos, assim como os algozes, que vão da família ao Estado.
O drama de tantos meninos e meninas passa ao largo das preocupações de grande parte da sociedade. Não há uma mobilização maciça em prol da proteção deles. O poder público, por sua vez, falha na prevenção às violações e na redução de danos. Desrespeita a própria Constituição, que determina “absoluta prioridade” aos direitos de crianças, adolescentes e jovens, inclusive o de viverem a salvo de “exploração, violência, crueldade e opressão”.
Leis de proteção, por sinal, não faltam, mas a aplicação integral delas revela-se uma utopia. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) tem quase três décadas de existência e ainda enfrenta resistências para ser cumprido à risca. Mesma situação da Lei Menino Bernardo, incluída no ECA, que estabelece o direito de crianças e adolescentes serem cuidados e educados sem o uso de castigos físicos e de tratamento cruel. Criada há cinco anos, quase não tem divulgação. Muita gente nem sabe que mesmo agressões consideradas “leves” — como palmadas e beliscões — são proibidas.
Nessa rotina de negligenciar os mais indefesos, as violações se sucedem. Em 2017, das 307.367 vítimas de violência no Brasil, 126.230 foram crianças e adolescentes, ou 41%. Os dados são do Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde (Datasus), em seu levantamento mais recente. Em 2018, o Disque 100 — canal de denúncias do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos — registrou 152.178 tipos de violações contra esse público no país.
Os abusos físicos, psicológicos e sexuais sofridos por crianças e adolescentes, o impacto na vida deles e falhas na rede de proteção são temas da série Infância, um grito de socorro, que o Correio inicia nesta segunda-feira (9/9), com recorte para o DF. Nesta primeira reportagem, autoridades policiais, judiciais e especialistas abordam uma das práticas mais nefastas e arraigadas no país: as agressões físicas e psicológicas.
Em 2018, o Disque 100 registrou 1.147 denúncias de violência física contra meninos e meninas no DF. Os casos de violência psicológica foram 1.621. E os dados nem representam, de fato, a realidade, porque os abusos, muitas vezes, são praticados às escondidas, no seio da família. A subnotificação também costuma ser alimentada pelo silêncio de parentes, amigos, vizinhos. A banalização de agressões condena meninos e meninas a sofrerem calados, sem socorro.
Na Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente (DPCA), as ocorrências não param. Os agressores são, principalmente, do núcleo familiar — mãe, pai, avós, padrasto, madrasta. Um dos casos que chamaram a atenção dos agentes foi o de dois irmãos, de 4 e 5 anos, que chegaram ao local com as mãos inchadas e em carne viva. Lesões provocadas pela própria mãe. Ela esquentava uma colher no fogo e os fazia segurar. Aos policiais, disse que os castigava para discipliná-los, pois faziam muita bagunça.
“A gente vê coisas punks aqui de castigo físico. Há quem diga que é besteira, mas não é, é algo gravíssimo”, alerta a delegada-chefe da DPCA, Ana Cristina Melo Santiago. “Tanto que temos um setor só trabalhando com isso.” Ela se refere à Seção de Repressão às Infrações de Menor Potencial Ofensivo — como são considerados, na legislação, maus-tratos, lesões corporais e injúria, por exemplo.
Quem chefia a divisão é Andrea Boanova. De acordo com ela, agressores veem a violência como uma forma normal de correção. “Tive aqui o caso de uma mãe que agredia o filho. A gente foi buscá-la, ela foi presa, e falava: 'Vou fazer quantas vezes forem necessárias. O filho é meu, quem educa sou eu”, relata.
O drama é maior para as meninas, segundo Ana Cristina Santiago. “Muitas apanham porque não levaram o sapato do pai, não arrumaram a cama, não lavaram a louça. São garotas de 6, 7 anos.”
Fernanda Falcomer, chefe do Núcleo de Estudos, Prevenção e Atenção à Violência (Nepav), da Secretaria de Saúde, lembra que a prática está na nossa história. “A sociedade tende a fazer o discurso: 'Eu apanhei, mas virei gente de bem'. É aceito que se bata em criança.”
Memória
Maus-tratos e mortes
Em maio deste ano, duas atrocidades abalaram o DF. Uma delas foi o violento espancamento de quatro crianças, de 1, 3, 7 e 9 anos, em Planaltina de Goiás. A menina de 7 anos morreu. Os covardes foram a tia, 17, e o namorado dela, 19. O próprio casal contou à polícia que as agressões aos irmãos ocorriam com frequência. Dois dias depois, houve outra barbárie, desta vez em Samambaia. Rhuan Maycon, 9 anos, foi esfaqueado até a morte, enquanto dormia, pela mãe, Rosana Auri, e pela companheira dela, Kacyla Priscyla. As duas degolaram a criança ainda viva e esquartejaram o corpo. A investigação mostrou que o assassinato foi o ápice do horror que Rhuan enfrentava. Ele sofria constantes maus-tratos e teve o pênis decepado, numa cirurgia caseira, um ano antes da morte.
De medidas protetivas a trabalho com famílias
A convivência com a família é um direito de crianças e adolescentes. Por isso, eles são encaminhados para acolhimento apenas em casos emergenciais, quando estão em situação de risco iminente. O Conselho Tutelar pode lançar mão dessa medida, mas é o juiz da Infância e da Juventude que definirá se a vítima deve ser reintegrada à família ou permanecer no serviço de acolhimento até a solução do problema.
Por vezes, porém, decidir pelo afastamento da família é uma tarefa difícil para os conselheiros, como conta Fabiana Oliveira, coordenadora da unidade no Paranoá. No ano passado, ela se deparou com o caso de dois irmãos: um menino, de 12 anos, com autismo severo, e uma menina, de 6. A mãe, alcoólatra, os espancava. Quando da retirada de casa, o garoto ficou agressivo. “Foi de partir o coração. A gente via que o filho tinha vínculo com a mãe, a única que conseguia acalmá-lo, mas ela não tinha condição de proteger os dois”, lembra. Atualmente, a mulher está em tratamento, e os irmãos, num abrigo.
Fabiana Oliveira já teve de lidar com o outro lado da moeda: insistia num acolhimento e não era atendida. A vítima foi um menino, de menos de 2 anos, agredido pelo padrasto. Ela o encontrou com olho roxo e barriga queimada. “A mãe, ele não queria, mas ia para o colo de qualquer outra pessoa”, relata. O MP, diz ela, não aprovou o acolhimento, só o fazendo quando o homem agrediu novamente a criança: a mordeu no rosto.
Conselheiro no Recanto das Emas, Paulo Moura lembra o martírio de um menino de 9 anos, espancado pelo pai. Ele tinha tantos hematomas pelo corpo que a escola acionou o Conselho Tutelar. “Eu quase chorei quando o vi”, afirma. No processo, ficou constatado que o garoto não tinha mais condições de retornar à família. Foi adotado tempos depois.
A destituição do poder familiar, porém, é a medida mais extrema. “Só o juiz pode alterar o vínculo que a criança tem com sua família. Para que ele faça isso, não basta ler um documento que vem da escola, do hospital, da delegacia”, explica Reginaldo Torres, supervisor da Seção de Atendimento à Situação de Risco da Vara da Infância e da Juventude do DF. É dele e da equipe de psicologia e serviço social da Seasir a missão de municiar o juiz de informações.
Os profissionais fazem visitas domiciliares, entrevistam os familiares e as crianças vitimadas, conversam com a rede, como escolas. De acordo com Torres, a missão é intervir em prol da família, porque a criança tem o direito de conviver de forma saudável no seu próprio núcleo familiar. “A gente não é fábrica de colocar criança em abrigo para alimentar a adoção, o desejo dos casais de adotarem filhos”, destaca.
"Violência é doença crônica"
Agressões e tratamentos degradantes na infância e na adolescência têm o potencial de interferir negativamente na formação de meninos e meninas. O manual Pelo fim dos castigos físicos e humilhantes — desenvolvido pelo Promundo, com o apoio da Save the Children Suécia e da Fundação Bernard van Leer — aponta uma série de consequências para as vítimas. Entre as quais, comprometimento da autoestima, gerando um sentimento de pouca valia e expectativas negativas a seu próprio respeito; impacto no processo de aprendizagem e desenvolvimento da inteligência; sentimento de solidão, tristeza, abandono, ansiedade, culpa.
Diante de tantos efeitos nefastos e para divulgar a educação pelo diálogo e pela tolerância, a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) promove a campanha permanente Violência é covardia. As marcas ficam na sociedade. Além do site, a instituição pretende lançar vídeos informativos nas redes sociais para conscientizar sobre o grave problema.
“A violência é uma doença crônica”, alerta Marco Antônio Chaves Gama, presidente do Departamento Científico de Segurança da SBP. “Crianças e adolescentes chegam (ao consultório) com dor de cabeça, fratura, manchas pelo corpo, deprimidos”, diz. “Ela é contagiosa, endêmica, crescente e fica cada vez mais cruel. Está em qualquer lugar. Não é exclusiva das camadas mais carentes. E não tem relação com escolaridade. Os pais de alta escolaridade também são violentos.”
“Assustador”
Gama cita dados do Datasus, de 2017, com registros de 126.230 casos de violência contra crianças e adolescente. “Desses, 10% são crianças abaixo de 4 anos. É assustador”, ressalta. “E isso é subnotificado. Segundo a Academia Americana de Pediatria, para cada caso registrado, ocorrem de 15 a 20 que não são conhecidos.”
Dos casos registrados, 72.498 ocorreram na casa da vítima. As mães foram algozes em 34.495 deles, e o pai, em 25.962. “A violência contra a criança é repetitiva e domiciliar”, frisa. “As sequelas são física e psicológicas. Eles vão crescer com uma série de problemas, vão ficar violentos, porque a sociedade, em nenhum momento, os ajudou a sair disso.”
Na opinião dele, o caminho da mudança passa pelo conhecimento da gravidade do problema e pela punição dos abusadores. “Quando um agressor é punido, impacta na diminuição da violência. O problema é que o agressor nem sempre é preso”, lamenta. Ele defende que juízes, promotores e advogados tenham, em sua formação, estudos voltados para esse mal. “Em contrapartida, eles podem nos orientar sobre como fazer relatórios mais robustos, que ajudem nas sentenças.”
O especialista lamenta a falta de campanhas mais efetivas de combate à crueldade. “O problema é o desconhecimento. Nossa tendência é nos esquivarmos, porque é de doer mesmo, mas temos de sair da zona de conforto. Os números são alarmantes e não se fala nisso”, critica.