Crise do clima expõe desigualdade de gênero e impacto na infância

Veículo: O Globo - RJ
Compartilhe

Crise do clima: Crianças, adolescentes e mulheres sofrem mais os efeitos de desastres ambientais

Crise do clima
Foto: Anthony Fleyhan

Sucessivos recordes de temperatura tornaram 2023 o ano mais quente já registrado até agora. A crise climática está posta e é sentida por toda a população global, mas não da mesma maneira. Enquanto corre-se contra o tempo para tentar mitigar seus impactos, crianças, adolescentes e mulheres são os primeiros a pagar a conta. E não apenas por desastres naturais, mas também por impactos indiretos em sua rotina.

Relatório do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) estima que um bilhão de crianças e adolescentes, quase metade da população de menores no mundo, vive em países com risco extremamente alto de sofrer impactos da crise climática. As regiões mais afetadas são o Sul da Ásia e a África, mas países da América Latina, como México e Venezuela, também estão sob alto risco.

— Hoje, uma em cada quatro mortes de crianças de até 5 anos está relacionada a riscos ambientais, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS) — diz Letícia Carvalho Silva, advogada e assessora internacional do Instituto Alana, que desenvolve projetos socioambientais em defesa das crianças.

Os números expressivos têm razão de ser. Fisiologicamente, os corpos de crianças e adolescentes, e principalmente órgãos como o coração, cérebro e pulmão, ainda estão em desenvolvimento. Além de terem sistema imunológico mais frágil, estão mais expostos à desidratação e sua temperatura corporal não é regulada como a dos adultos. Por si sós, essas vulnerabilidades naturais fazem com que os efeitos da crise climática — como as ondas de calor — sejam sentidos mais intensamente.

Abandono da escola

Aspectos sociais também contribuem para o contexto de mais exposição. Os menores em geral dependem de outras pessoas para obter cuidado, alimentos, proteção e deslocamento. O país, a classe social, a etnia e a comunidade à qual pertencem, bem como o acesso a recursos naturais, também vão definir o grau de sensibilidade à crise.

— Os problemas não se limitam a eventos extremos, mas se desdobram ao longo do tempo, gerando impactos crônicos na vida das crianças, especialmente no direito à educação — observa Silva.

Em relatório publicado em novembro, o Unicef aponta que 40 milhões de crianças e adolescentes têm a educação afetada anualmente devido a desastres. O calor excessivo compromete o rendimento e a concentração, principalmente em escolas não adaptadas às mudanças climáticas, explica Moa Cortobius, da ONG Save The Children. Catástrofes podem bloquear vias de acesso e até suspender aulas.

— Quando a comunidade é afetada, muitas vezes também as escolas se tornam albergues — afirma. — A escola ganha outra função e a educação acaba sendo impedida.

O abandono da sala de aula também pode ser provocado pelas famílias, que buscam ajuda para a complementação da renda e no cuidado da casa. Em alguns países, uma das principais tarefas delegadas às meninas é buscar água para abastecer as residências. Na Etiópia, país afetado por dura crise hídrica, pelo menos 20% delas deixaram a escola para ajudar suas famílias nessa tarefa, segundo o Unicef. Os reservatórios costumam ficar longe de casa, expondo essas crianças ao risco de assédio e abuso sexual.

Homens decidem

Virar adulta não livra as meninas de correr mais riscos. Segundo o Programa das Nações Unidos para o Meio Ambiente (Pnuma), as mulheres têm 14 vezes mais risco de morrer ou ficar feridas em um desastre ambiental relacionado ao clima do que os homens. Nas atividades rurais nos países em desenvolvimento, metade da força à frente das atividades do dia a dia com a responsabilidade de garantir alimento, água e outros recursos às suas famílias é composta por meninas e mulheres — carga que aumenta quando uma comunidade é atingida por desastres ambientais.

— A crise climática acentua as desigualdades existentes. As mulheres afrodescendentes são um dos grupos mais atingidos por estarem na linha de frente em suas comunidades, elaborando tecnologias, cuidando e preservando seus territórios e promovendo ações de mitigação e resiliência — explica Letícia Leobet, gestora de projetos na Geledés – Instituto da Mulher Negra.

Mesmo que as mulheres sejam as mais afetadas, são os homens que seguem tomando as decisões. Dos 133 chefes de Estados e governo que participaram da COP28, em Dubai, nos Emirados Árabes Unidos, apenas 15 eram mulheres, segundo a organização humanitária Care. Na cúpula anterior, no Egito, pouquíssimas delegações equilibraram a quantidade de homens e mulheres — as delegadas representaram apenas 35%.

Crianças e adolescentes, por sua vez, participaram como agentes (ou seja, parte da concepção e implementação de ações) contra a crise climática só no ano retrasasado, mostra o Alana. Em 31 anos de COPs, ainda não foi apresentada uma ação contundente voltada especificamente para esse grupo.

— Porque a gente vive numa sociedade adultocêntrica, elas [as crianças] são marginalizadas — destaca Emanuelle Goés, coordenadora do Instituto Iyaleta.

Para saber mais sobre o direitos das crianças, conheça a newsletter Infância na Mídia.