É preciso olhar para a saúde mental dos adolescentes sem medicalizar vivências sociais comuns, dizem especialistas
Um em cada sete adolescentes de 10 a 19 anos tem algum transtorno mental, segundo dados da OMS (Organização Mundial da Saúde). No ano passado, uma análise da Folha a partir de dados da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) do SUS (Sistema Único de Saúde), de 2013 a 2023, mostrou que os registros de ansiedade entre crianças e jovens superam os de adultos pela primeira vez.
O aumento deste e de outros diagnósticos entre adolescentes, como TDAH (transtorno de déficit de atenção e hiperatividade), TEA (transtorno do espectro autista) e depressão, pode ter diferentes origens. O limiar entre o que é de fato um aumento de desordem psiquiátrica ou uma medicalização da vida —atribuir à medicina algo que não é dela— é tênue e precisa ser olhado com cautela.
Especialistas ouvidos pela reportagem apontam, após o período da pandemia, a sociedade está mais sensível para a discussão sobre saúde mental, e um olhar mais atento para essa questão poderia ser uma das causas do aumento de casos. Outra possibilidade seria o estilo de vida dos jovens, sempre hiperconectados, o que pode levar a sintomas de ansiedade e depressão.
“Essa onda digital está muito associada ao transtorno mental“, afirma Karina Diniz, professora doutora do Departamento de Psicologia Médica e Psiquiatria da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas). As redes sociais, cyberbullying e a divisão da atenção exacerbam questões psicológicas.
A agilidade da era digital pode fazer com que a pressão também fique maior em cima dos mais jovens. A exposição e a preconização de padrões de vida inalcançáveis das redes sociais são fatores novos e se somam a outras questões da adolescência que já eram naturais da fase.
Guilherme V. Polanczyk, psiquiatra de crianças e adolescentes e professor da FMUSP (Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo), diz que a necessidade de pertencimento a um grupo e a comparação sempre fizeram parte da adolescência, mas as redes sociais amplificam essas questões.
“A conexão, a comunicação pela internet, tem muitas características que tornam mais incerta a relação. A incerteza é um fator cognitivo que é um potencial gerador de ansiedade”, diz o psiquiatra. A pressão acadêmica, em determinadas classes sociais, e a incerteza do mercado de trabalho também ajudam a exacerbar inquietações.
Esses fatores podem gerar sofrimentos profundos e reais no período da adolescência. Por isso, é importante perceber quando os sentimentos estão trazendo prejuízos aos adolescentes, por meio de uma avaliação minuciosa e especializada.
“Às vezes, são quadros bem graves. Estão muito associados também à ideação suicida e à automutilação”, afirma Diniz. “É importante perceber isso para que não prejudique a socialização, o que pode trazer sequelas na vida adulta.”
A partir desse olhar atento, é importante também tomar cuidado para não patologizar um sofrimento psíquico característico —e importante— para o processo de desenvolvimento na adolescência; que é um dos possíveis fatores de hiper diagnósticos.
Para Polanczyk, o fato de criadores de conteúdo na internet falarem e reforçarem um discurso do diagnóstico e da patologia, de questões e emoções que são normais da vida, influenciam os jovens a terem uma linguagem mais psiquiátrica.
Com a ampliação do debate em saúde mental acabou se normalizando também o ato de tomar remédios psiquiátricos. Em muitos casos, a medicação é sim necessária, mas diagnósticos incorretos e a hipermedicação de adolescentes podem trazer alguns riscos, sobretudo sociais.
O coordenador do curso de psicologia da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo), Claudinei Affonso, questiona a qualidade dos diagnósticos que encontra na clínica atualmente. “A gente tende a querer respostas mais rápidas e explicativas. Tanto os jovens quanto as famílias, e o diagnóstico e a medicação muitas vezes aliviam a angústia de algo que não tem uma resposta tão clara”, diz.
“A gente tende a querer respostas mais rápidas e explicativas. Tanto os jovens quanto as famílias, e o diagnóstico e a medicação muitas vezes aliviam a angústia de algo que não tem uma resposta tão clara”.
Claudinei Affonso, coordenador do curso de psicologia da PUC-SP
O psicólogo lembra que a fase da juventude é o reconhecimento da pessoa na sociedade e a construção de valores pessoais. Esse processo pode ser de fato conflitante e angustiante, mas é fundamental para o amadurecimento.
“Até para que o jovem possa utilizar do seu potencial pessoal, da sua própria agressividade, no sentido positivo, de criar novas situações, de buscar novos contextos”, diz, complementando que é a criatividade que promove a transformação da sociedade.
Para o desenvolvimento emocional desse jovem, a medicalização de fatores comuns dessa fase pode prejudicar a promoção de habilidades importantes, como o repertório emocional para lidar com adversidades e frustrações, que é criado por meio da vivência de desafios, fala Polanczyk.
“É muito complexo isso, porque a gente não quer passar a mensagem de que tomar a medicação é inadequado, as pessoas precisam estar abertas a esse tipo de ajuda de tratamento. Por outro lado, sem dúvida, qualquer tipo de tratamento que é oferecido de uma forma inadequada tem seus riscos”, complementa o psiquiatra.
O acompanhamento multidisciplinar, com psiquiatra e psicólogo, pode ser proveitoso nessa idade. A psicoterapia auxilia na sustentação do sofrimento, para que as habilidades emocionais sejam fortalecidas. Diniz acredita que a avaliação de crianças e adolescentes deve sempre envolver a família, para que esta seja devidamente orientada, e analisar todos os contextos que o adolescente está inserido, como a escola.
Além de afetar o adolescente, um excesso de diagnósticos pode impactar o sistema de saúde. “Os serviços de saúde estão sobrecarregados, há falta de profissionais. As escolas têm uma demanda dos pais das famílias com atestados e diagnósticos”, conta Polanczyk. Diniz e Affonso concordam que o ideal para a saúde mental é ir além do debate de patologias, concentrando esforços na promoção de políticas públicas para os jovens.
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