Educação Infantil indígena: o que a relação das crianças com o território pode nos ensinar

Veículo: Nova Escola - BR
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Educação Infantil Indígena: Espaço também é um elemento educador e pode oportunizar aprendizagens relacionadas à natureza, à comunidade e ao desenvolvimento da autonomia

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Foto: Getty Images

Nos últimos anos, a discussão sobre o desenvolvimento da autonomia entre as crianças ganhou força, e formas para que essa independência seja desenvolvida desde a Educação Infantil são constantemente discutidas entre especialistas, professores e familiares. Uma contribuição para esse debate pode vir das comunidades indígenas, em que a liberdade e a autonomia sempre fizeram parte da concepção de infância, e as crianças, desde cedo, são ensinadas a zelar pelo espaço.

“A criança indigena é tão autônoma que faz atividades muitas vezes consideradas apenas de adultos, como cuidar dos irmãos, ajudar os pais no cultivo e no preparo dos alimentos e se envolver nas atividades domésticas. Na nossa cultura é uma coisa natural”, comenta Adrieli Caroline Marques Lopes, professora guarani na Escola Municipal Indígena Ramão Martins, na Aldeia Jaguapiru, em Dourados (MS).

Alva Rosa, doutora em Educação, professora e líder do povo Tukano, também descreve a importância da autonomia infantil para sua população. “Toda vez que você vai para o território indigena, vê as crianças pequenas nadando no rio, carregando os irmãos, carregando água, plantando. Isso é o nosso dia a dia, é o que fazemos. Ajudamos nossos pais, mas também temos o tempo de brincar, de dormir, de estar com os parentes e de ir para a escola. Isso é transmissão de conhecimento”.

Ela conta que quando uma criança vai para a roça com a mãe, ela vai recebendo  orientações. “Hoje, adulta, eu sei o processo todo de fazer roça, beiju, tupi, farinha… E as crianças da minha família mostram com orgulho o que fizeram”, completa.

Para a etnia Haliti-Paresi, a autonomia também é importante, pois a infância é uma fase de construção de saberes de um povo. “A Educação Infantil é realizada com saberes da nossa comunidade. As crianças participam de tudo, e a relação com o território é constante, faz parte da sua formação”, destaca Geisy Iwanazokaero Dalbosco, professora na Escola Indígena Vandermiro Yamore, no município de Sapezal (MT). “O aprender está ligado ao ambiente, e a aprendizagem da criança é ampla porque ela está livre dentro do seu território para aprender com seus pais, tios, primos e avós.”

Rotina escolar e a relação com o território

O território onde as escolas estão inseridas influencia a prática pedagógica, pois esse espaço também é um elemento educador. Alva Rosa explica que é essencial considerar as infâncias indígenas que não acontecem em territórios demarcados ou em comunidades pequenas.

Há escolas em aldeias menores, com só 20 famílias, enquanto algumas têm 200 e outras chegam a mil famílias. Nas pequenas, ela conta, há uma rotina muito familiar: todos, incluindo os professores, se reúnem pela manhã, comem juntos, o cacique ou responsável dá os avisos para a comunidade, os pais vão para a roça e as crianças para a escola – a maioria, só de manhã. “Já em comunidades maiores não dá tempo de fazer o tempo comunitário todo dia, às vezes, só aos finais de semana. Quando passa de mil, a rotina muda: as coisas são divididas em vilas de aproximadamente 200 famílias e cada uma tem a sua programação.”

Primeira mulher indígena a obter o título de doutorado pela Universidade Federal do Amazonas (Ufam), Alva diz que a escola foi o instrumento utilizado para a destruição da cultura indígena quando os europeus chegaram aqui. E que, hoje, ela é o instrumento para a valorização dessa cultura. “Ela muda a rotina de uma aldeia, de uma comunidade, e nossas lideranças têm reivindicado políticas para os territórios que incluem demandas educacionais. Falamos muito que a Educação é prioridade, mas ela tem que respeitar a forma organizacional do povo e ser sua aliada”, defende.

O Decreto 6.861/09 determina que os povos indígenas têm direito a uma Educação escolar diferenciada, intercultural, bilíngue/multilíngue e comunitária. Também inclui a contratação, preferencialmente, de professores indígenas, principalmente para a Educação Infantil, pois as crianças ainda estão aprendendo a falar e têm seu primeiro contato com o ensino formal.

“Aqui na escola temos o ensino em portuguêm e em duas línguas indígenas, perene e guarani, conforme a etnia da criança. Recebemos muitas crianças pequenas que já falam muito bem a língua indígena e teriam muita dificuldade se fossem para uma escola regular”, aponta Adrieli.

Segundo ela, uma série de fatores faz com que o calendário escolar não seja tão rígido. Em sua comunidade, as casas são longe da escola e as crianças utilizam ônibus. Durante o período de chuva, o tráfego pelas estradas fica muito difícil e os alunos chegam a faltar na escola. Como isso é algo já esperado, a escola está sempre preparada para alterar o calendário. Outro motivo de faltas é a necessidade do isolamento da criança em caso de doenças, pois são tratadas com remédios caseiros e rituais específicos.

Como Dourados é um polo universitário, muitas pessoas indígenas de várias etnias vêm para a cidade estudar e os filhos frequentam a escola. “E também há não indígenas que moram na aldeia. São poucos os casos de preconceito, as crianças se dão bem. Lá fora, se uma criança indigena vai estudar na escola pode sofrer muito preconceito, o que é a maior barreira. Eu mesma enfrentei muitos problemas quando era estudante”, relata a professora. “Para que a criança tenha o Teko Porã (bem-viver) precisa estar envolvida com as questões do território, com os ensinamentos da sua família, e a escola tem que respeitar isso”.

Experiências práticas com a natureza e a língua

Adrieli comenta que a escola onde trabalha tem apenas oito anos e, no início, não havia muitas árvores. Professores e pessoas da comunidade fizeram um projeto e pediram mudas para a prefeitura. Inicialmente, o plano era ter muitas árvores ornamentais e frutíferas, mas não foram oferecidas muitas opções. “Nos deram mudas de nêspera, jatobá e jacarandá. Para os indígenas, o jatobá é frutífero e o jacarandá na nossa cultura é um remédio. As crianças ainda não conheciam essas árvores, e tivemos que explicar o que é cada uma. O cuidado com as plantas seguiu ao longo do ano.”

Além das roças, onde são plantados muitos alimentos consumidos pela comunidade, agora as crianças também entendem sobre o plantio e cuidado com árvores e com um jardim, que a escola também mantém. Desse modo, a Educação Ambiental é trabalhada entre as famílias e na escola.

Já na Escola Indígena Vandermiro Yamore, Sapezal (MT), uma atividade iniciada com as famílias repercutiu em sala de aula. Geralmente, as crianças vão com os pais colher frutas sazonais do Cerrado, como pitomba, cajuzinho do mato, pequi e mangaba. Como esses frutos não estão dentro da aldeia ou próximo à escola, a professora não consegue levar todas as crianças. Mas é comum muitas irem até lá, comer algumas frutas no local e as levar para a escola e para casa.

“O desenvolvimento dessas atividades com as crianças se deu em diversos momentos no território e em sala de aula. Na coleta das frutas foi transmitido o conhecimento de seus antepassados, que caminhavam longas distâncias à procura de alimento”, conta a professora Geisy. “Na escola, elas aprenderam a importância das árvores e como preservá-las. Também desenharam, coloriram e aprenderam o nome dessas frutas.”

 

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