Em 2021, uma criança foi abandonada a cada 30 horas no Estado do Rio

Veículo: O Globo - RJ
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Domingo, 29 de maio, 19h. O plantão daquele dia parecia ser mais um na carreira dos policiais militares Renan Zambrano e Claudio Sardinha, do 7º BPM (São Gonçalo). No entanto, o destino de uma recém-nascida cruzou o caminho dos agentes, que foram acionados para resgatar a bebê que estava dentro de uma lixeira no bairro Jardim Catarina, em São Gonçalo.

Cena tão triste está longe de ser um caso isolado. Segundo dados do Instituto de Segurança Pública (ISP), 288 crianças foram abandonadas no Estado do Rio no ano passado — uma a cada 30 horas. O número é o maior dos últimos cinco anos e 30% acima do registrado em 2020. Se considerados também os adolescentes, de 12 a 17 anos, impressiona mais: foram 363 — um por dia.

População infantojuvenil acolhida — Foto: Editoria de Arte

População infantojuvenil acolhida — Foto: Editoria de Arte

— Era uma área de risco, dominada pelo crime, mas a gente nem pensa no perigo, só na tentativa de salvar a vida daquela criança. Tenho uma filha de 10 meses — diz Zambrano, que também é pai de outro menino, de 2 anos, além de ter uma enteada.

A bebê segue internada no Hospital Adão Pereira Nunes, em Caxias, para onde foi levada e aguarda por uma família acolhedora.

— É sempre uma situação atípica, que nos deixa emocionados e nos faz pensar no que leva uma mãe a fazer isso. Certamente, ficará marcado na minha memória. Impacta demais — conta o sargento Claudio, pai de dois filhos.

Bebês rejeitados

Apenas cinco dias depois, outra bebê foi deixada numa outra rua de São Gonçalo, desta vez no Centro. Enrolada num saco plástico, com apenas 4 dias de vida, ela foi encontrada por pessoas que passavam. Atendida na Maternidade Municipal Doutor Mario Niajar, a menina está agora com uma família acolhedora. Dados do ISP mostram que os casos de abandono em São Gonçalo dobraram de 2020 para 2021. Ao mesmo tempo, o município aparece em terceiro lista de acolhimentos do Ministério Público.

Tamanha chaga social se reflete nos abrigos e nas famílias acolhedoras do Estado do Rio, onde há 1.369 crianças e adolescentes, a maioria até 11 anos e 81% negros (pretos e pardos), segundo levantamento feito pelo Ministério Público do Rio (MPRJ). Metade deles sequer recebe visitas. Do total, 36% entraram no sistema devido à negligência dos responsáveis. Casos como os de São Gonçalo, em que a criança ou o adolescente é abandonado, aparecem em segundo lugar na lista, com 8,8%.

— Conflitos familiares são destaque dentro do abandono. É sempre uma situação dramática. E negligência, que seria a falta de zelo e de cuidado ao não alimentar ou não cuidar da criança, por exemplo, quase sempre é a primeira causa, acompanhada de um outro motivo — explica o coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça da Infância e da Juventude do MPRJ, Rodrigo Medina.

A pandemia, segundo o promotor, trouxe à tona mais um agravante: no último levantamento, “motivo de doença” passou a figurar entre as dez primeiras razões alegadas para o abandono.

— Isso ocorreu possivelmente devido ao agravamento do estado de saúde dos pais ou responsáveis. O aumento se deve ainda ao desemprego, ao desalento das pessoas com a pandemia, de perspectivas frustradas pela Covid-19 e até de morte pela doença — analisa Medina.

O censo do MPRJ revela ainda outra face cruel. Dos 1.369 abrigados, apenas 11,69% estão aptos para adoção e 8,1% apresentam algum tipo de necessidade especial. Além disso, 1,6% aguarda há mais de dez anos por um lar.

Coordenadora de psicologia da 1ª Vara da Infância, da Juventude e do Idoso do Rio de Janeiro, Erika Piedade diz que vem percebendo que há mais bebês sendo rejeitados nos últimos meses, especialmente nas maternidades. Ela atribui esses casos ao aumento da pobreza. O Tribunal de Justiça do Rio informou que, até agora, houve seis registros desse tipo este ano na cidade.

Para uma enfermeira do Hospital Maternidade Herculano Pinheiro, em Madureira, que pediu para não ser identificada, essa realidade cruel faz parte de sua rotina:

— São pelo menos dois partos de mulheres viciadas em drogas por mês aqui. Mães que não têm condições financeiras, físicas ou emocionais, de criar a criança. Quando não aparecem parentes, os bebês seguem para adoção. É uma realidade triste, bem mais comum do que se pensa, e que não fica restrita a usuárias. Já acompanhei o drama de mães que abandonaram os filhos porque o marido não queria mais crianças em casa.

O abandono difere da entrega voluntária para adoção, prevista no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que acontece quando a mãe, ainda na gravidez ou após o parto, procura o Judiciário.

— É importante esclarecer que não há crime em manifestar o desejo de entregar a criança para a adoção. Ela merece ser acolhida e amada por uma família. Crime é abandonar. Deixar o bebê numa situação de risco, deixá-lo numa maternidade e ir embora — pontua Erika Piedade. — As pessoas têm medo de comunicar a vontade de entregar o filho.

Sem condições de criar os quatro filhos, uma mãe trocou a convivência com as crianças por visitas esporádicas à Unidade de Reinserção Social Ziraldo, no Méier, onde elas estão acolhidas. O mais velho, de 12 anos, chegou ao abrigo no ano passado. Meses depois, os outros três — de 1, 8 e 10 anos — se juntaram ao adolescente. No mesmo lugar, está internado há cerca de um ano X., também de 12 anos, que tem transtornos psiquiátricos leves. A mãe dele morreu, o pai foi preso e duas tias não aceitaram cuidar do sobrinho.

— Eu foco na mudança, na qualidade de vida e na garantia de direitos dessas crianças. Tento não pensar no sofrimento, nas mazelas. Isso me motiva e conforta meu coração de mãe — conta a diretora da unidade, Renata Matos.

Roda dos expostos

O abandono de crianças é problema social que persiste ao longo do tempo. No século 18, a Santa Casa de Misericórdia, no Centro do Rio, tinha a roda dos expostos, onde recém-nascidos rejeitados eram deixados por suas famílias.

— A roda era muito utilizada por mães que não podiam criar seus bebês, filhos de escravos fugidos ou para crianças que eram frutos de adultério, algo inadmissível para a época. O bebê era colocado no dispositivo, tocava-se uma sineta e rodava o objeto instalado no muro para dentro. Era como abdicasse, ali, do direito e do dever de cuidar do pequeno, dando essa missão para outra pessoa — detalha o professor e historiador Rafael Mattoso.

A roda atravessou a Colônia, o Império e chegou à República. Aposentada, virou peça de museu, como a que está exposta no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, na Glória.