Em 4 meses, 250 meninas entre 10 e 14 anos tiveram filhos no Amazonas
Entre janeiro e abril deste ano foram registrados 250 nascimentos de crianças no Amazonas de mães que tinham entre 10 e 14 anos. Desses casos, 49 ocorreram em Manaus e 14 em Coari — município que tem um histórico de abusos sexuais e pedofilia. A gravidez, para a maioria dessas mães precoces, gera traumas silenciosos e abandono institucional.
Pela legislação, relação sexual com menores de 14 anos é tipificada como estupro de vulnerável — ou seja, é crime, independentemente de consentimento, histórico de relacionamento ou ausência de violência física. Isso significa que, entre os partos registrados, todos os que envolvem meninas com menos de 14 anos são, juridicamente, resultado de violência sexual.
Em entrevista ao ATUAL, Janaina Porto, advogada criminalista, afirma que a lei é clara: “A lei parte do princípio de que uma criança ou adolescente com menos de 14 anos não possui maturidade suficiente para consentir validamente a um ato de natureza sexual. Ou seja, mesmo que haja ‘consentimento’, ele não é reconhecido juridicamente e esse ato é considerado crime grave, com pena de 8 a 15 anos de reclusão”.
Segundo dados da FVS (Fundação de Vigilância em Saúde do Amazonas), os municípios com mais casos no período foram Manaus (49 partos), Coari (14), Tefé (10) e Parintins (10). Em Coari, o número mais que dobrou em relação ao mesmo período do ano anterior, saltando de 5 para 14 casos — um aumento de 180%.
Apesar do crescimento em alguns municípios, o total de partos no primeiro quadrimestre de 2025 caiu 8,7% em comparação ao mesmo período de 2024, quando houve 274 nascimentos nessa faixa etária.
No entanto, os dados consolidados do ano passado revelam um cenário alarmante: Foram registrados 800 partos de meninas entre 10 e 14 anos em todo o estado. Manaus liderou com 200 partos, seguido por Maués (29), Tefé (28), Jutaí (22).
Especialistas ouvidas pela reportagem afirmam que os números revelam a persistência de um cenário de violência sexual sistemática, agravado pela desigualdade social e pela ausência de políticas públicas, principalmente no interior do estado.
O Boletim Epidemiológico da Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes, da FVS, mostra que o principal tipo de violência sexual que afeta meninas no Amazonas é o estupro de vulnerável. O documento cita ainda que “das crianças e adolescentes notificadas grávidas, a maioria estava na faixa etária de 10 a 14 anos”.
Entre 2020 e 2024, foram registrados 4.966 partos de meninas nessa faixa etária no estado, o que representa uma média de 2,7 nascimentos por dia. O boletim classifica esse número como “alarmante”, especialmente ao se considerar que, no mesmo período, foram notificadas apenas 2.131 ocorrências de violência sexual envolvendo meninas grávidas de até 14 anos.
A diferença de 2.835 partos em relação ao número de notificações indica, segundo o documento, uma subnotificação dos casos de violência sexual. Isso sugere que muitos episódios de estupro de vulnerável não são detectados ou registrados de forma adequada.
“A elevada incidência de partos entre meninas tão jovens indica não apenas uma falha nos mecanismos de detecção e notificação de abuso sexual, mas também revela lacunas críticas no sistema de proteção e apoio às sobreviventes, e o quanto o estupro de vulnerável ainda está apagado pela gravidez na adolescência”, diz o boletim.
“Eu era uma criança indo pra adolescência”
Entre as histórias silenciosas que não aparecem nas estatísticas da gravidez infantil no Amazonas está a de Jacqueline Santos, hoje com 43 anos. Ela engravidou aos 14 e teve a filha aos 15, quando ainda era, como ela mesma define, “uma criança indo pra adolescência”.
“Conheci meu esposo com 13 para 14 anos e logo engravidei. Eu morava com minhas irmãs, que já eram casadas, tinham filhos, mas nunca me instruíram, nunca tive orientação. Nem da minha mãe, nem dos meus avós. Meus pais eram separados desde que eu tinha seis anos, e fui criada pela minha mãe e depois fui morar com minhas irmãs, aos 12 anos. Elas não tiveram esse cuidado não, de me instruir, não tinham muita sabedoria em relação a isso, e aí engravidei nos meus 14 anos”, relatou.
Sem apoio familiar e sem entender o que se passava com seu próprio corpo, Jacqueline enfrentou o início da gravidez cercada de críticas e medo. Segundo ela, o mundo “virou de cabeça para baixo”. Aos quatro meses de gestação tomou remédio para tentar abortar, pois ainda não vivia com o pai da bebê, que tinha 16 anos.
“No início, eu fiquei com muito medo, eu ainda era muito nova. Uma criança indo para a adolescência. Meu mundo naquele momento virou de cabeça para baixo. Minha família, minhas irmãs, principalmente a mais velha, eram muito críticas. Me falavam palavras de ofensas. Eu tive uma gravidez muito conturbada”, conta.
Apesar de toda dificuldade, levou a gestação adiante. Ela diz que conversou com a filha, Jennifer Silva, hoje com 28 anos, sobre o episódio e diz que precisava “contar para poder se libertar”, referindo-se à tentativa de aborto ao descobrir a gravidez.
“Depois aceitei. Eu não sabia o que iria acontecer, mas queria muito. Tive medo, mas tudo é um plano de Deus. Se não fosse Deus, eu não sei o que teria sido de mim. Ele me deu sabedoria e entendimento e maturidade”, conta.
Jacqueline lembra que quem foi buscá-la na maternidade foi o então namorado — hoje marido —, que a levou para a casa da sogra. Lá, ela conta que se sentiu acolhida. Passou a morar com a sogra, onde, segundo relata, foi tratada como uma filha e teve todo o suporte para criar a menina.
“Não foi fácil. Mas minha sogra, que hoje tenho ela como uma mãe pra mim, me ensinou muita coisa. O que eu sei hoje, eu aprendi com ela. Ela me mostrava como fazer, e eu aprendi. A Jennifer sempre foi muito bem cuidada”.
A maternidade precoce exigiu que Jacqueline amadurecesse cedo. “Eu sempre digo que aprendi a ser responsável muito nova. Quando descobri a gravidez, entendi que viria um serzinho que precisaria de mim. Eu ainda era alguém que precisava de cuidados, mas tive que virar adulta rápido”.
Com a infância interrompida, ela teve que abrir mão de muitas coisas — entre elas, os estudos. Por não ter “uma rede de apoio”, precisou se virar para criar a filha da melhor forma que podia.
“Foi difícil. Não tinha quem ficasse com ela. Pra trabalhar, teria que pagar alguém e não tinha condições. Então, eu fazia bicos, dava um jeito. Me dediquei muito a ela. Cuidei tanto que ela não era nem de brincar, de correr. Era muito protegida. Eu não queria que acontecesse com ela o que aconteceu comigo [de gravidez precoce]”.
Hoje, passadas quase três décadas, Jacqueline tem uma segunda filha, Jaíne. A trajetória familiar foi marcada por desafios, mas também por afeto e reconstrução.
“A vida não é um mar de rosas, mas quando a gente escolhe se dedicar à vida de outras pessoas também, como a da Jennifer, que foi meu primeiro amor… a minha filha, ela foi meu primeiro amor. Então eu descobri ali, na gravidez e depois que ela nasceu, que ela era o amor da minha vida. Que eu teria que cuidar dela, dar aquele amor incondicional e cuidar dela. Então eu aprendi a ser uma mulher forte — uma jovem, uma criança forte, uma jovem e uma adulta ao mesmo tempo”, conclui.
Impactos emocionais e sinais de alerta
Lisiane Thompson Flores, psicóloga clínica da infância e adolescência, explica que, além das consequências físicas da gravidez precoce, as meninas enfrentam impactos emocionais e psicológicos que nem sempre são visíveis. Segundo ela, muitas jovens não compreendem o que estão vivenciando e chegam a negar a gravidez.
“Além dos problemas de saúde física, como bebês prematuros ou com má formação, as meninas muitas vezes não entendem o que ocorreu e chegam a negar a gravidez. Outra situação é a autoimagem: o corpo mudou e, consequentemente, elas se sentem feias e se isolam”, diz Lisiane.
A psicóloga comenta que as meninas que engravidam nessa idade tendem a ser criticadas, muitas vezes por familiares. Conforme a especialista, elas “sofrem pressão da família dizendo que não conseguem cuidar do bebê, gerando muita ansiedade e pode levá-las ao isolamento social, ou até mesmo a quadros de depressão”.
Para Lisiane, é fundamental que familiares e profissionais fiquem atentos a sinais que possam indicar abuso, pois muitas vítimas tentam esconder a violência. Entre os comportamentos preocupantes, ela cita mudanças drásticas como uma menina extrovertida que se torna introvertida ou agressiva, regressão em comportamentos, alterações de hábitos e marcas físicas suspeitas. “Às vezes, a vítima não quer mais falar, fica mais calada ou sempre alerta, e pede para trocar de escola”.
Ela reforça que o acolhimento imediato é essencial para minimizar os danos: “Primeiramente, é fundamental procurar ajuda médica e psicológica. A família deve sempre confiar no que a menina fala, deixando-a falar sem questioná-la, sem responsabilizá-la pelo ocorrido”.
Lisiane chama atenção para o risco de revitimização: a exposição repetida da vítima a ambientes institucionais para relatar o abuso pode aumentar o trauma, causando vergonha, medo e ansiedade em dobro. “Muitas vezes, a criança passa por vários locais para relatar o ocorrido e acaba não querendo mais falar ou frequentar esses lugares, revivendo o trauma repetidas vezes”.
Por fim, a psicóloga defende que tanto a menina quanto sua família precisam de acompanhamento psicológico para compreender e lidar com o ocorrido. A psicoterapia, segundo ela, oferece um espaço seguro para a expressão dos sentimentos sem julgamentos, além de fortalecer a vítima para enfrentar possíveis processos judiciais.
“O psicólogo deve usar uma linguagem que permita à menina falar sobre o abuso com liberdade, esclarecendo dúvidas e trabalhando a culpa para que ela entenda que a responsabilidade é do agressor,” conclui.
Ausência do Estado e silêncio das vítimas
Conforme Marília Freire, psicóloga, mestranda em Processos Psicossociais, pesquisadora de meninas-mães no Amazonas, e presidenta do Coletivo Feminista Humaniza, a gravidez de crianças e adolescentes está relacionada a um conjunto de fatores sociais, culturais e econômicos que se entrelaçam, especialmente nas regiões mais vulneráveis do interior do estado.
Para ela, um dos principais elementos sociais é o contexto familiar no qual a violência ocorre: muitas vezes, os abusadores são pessoas próximas, como pais, padrastos, avôs ou outros cuidadores. “Fatores sociais [estão] ligados às relações familiares e de confiança que normalmente estão presentes na relação entre o abusador e a menina abusada”, explica.
Do ponto de vista cultural, Marília alerta para a presença da chamada cultura do estupro, que naturaliza ou silencia a violência sexual contra crianças. Em algumas localidades, expressões populares e crenças arraigadas ainda reforçam a ideia de que homens adultos têm algum tipo de “direito” sobre meninas.
“A cultura de estupro é tão forte no Brasil, no Amazonas e no interior, que se revela em frases como: ‘quem plantou a bananeira fui eu, então eu que tenho que colher o primeiro cacho’”, relata.
A desigualdade econômica também contribui para a perpetuação dessas violências. Segundo a psicóloga, meninas em situação de pobreza estão mais expostas e vulneráveis, tanto à violência sexual quanto à falta de acesso a mecanismos de proteção. Famílias com melhores condições financeiras, por exemplo, conseguem pagar por redes de apoio e têm mais acesso à informação e aos serviços públicos.
Àquelas em situação de maior vulnerabilidade frequentemente enfrentam jornadas exaustivas de trabalho e menos acesso a direitos básicos. “Conhecer os direitos sexuais e reprodutivos e acessá-los é um privilégio que atravessa o recorte de classe social e econômica”, observa Marília.
Ela também cita que, no interior do estado, a ausência de serviços públicos de saúde que garantam o aborto legal amplia ainda mais essa violação de direitos. Mesmo quando a gravidez resulta de estupro, muitas meninas não têm a quem recorrer.
“É importante que os municípios invistam pesadamente no implemento do Programa Saúde na Escola ensinando meninas e meninos desde a infância sobre consentimento, sobre o próprio corpo, educação sexual nas escolas adequada às idades para que as crianças e adolescentes compreendam qual é o limite do aceitável, o que é carinho, o que é brincadeira e o que ultrapassa esse limite e avança na direção da violação de direitos humanos dessas crianças e desses adolescentes”, recomenda.
Silêncio que fortalece agressores
O silêncio das famílias, das comunidades e até das instituições diante de situações de abuso é um dos principais obstáculos para o enfrentamento da violência sexual contra meninas. Ela explica que esse silêncio acaba fortalecendo os agressores, que muitas vezes são pessoas próximas às vítimas. Segundo ela, “o silêncio sempre vai ser uma ferramenta de fortalecimento dos agressores e dos abusadores”.
Além disso, muitas famílias preferem não denunciar para evitar expor problemas internos. Existe um “pacto de silêncio […] fazendo com que as famílias não denunciem, porque não querem se expor nem lidar com esse problema no seio da sua família”, comenta. Esse cenário é agravado pela descrença nas vítimas, contribuindo para os abusos continuarem ocultos. Muitas vezes, “não validam as falas e os indícios que as crianças e adolescentes dão de que estão sofrendo um abuso sexual”.
Para Marília, romper com esse silêncio é fundamental para interromper a violência e garantir os direitos das crianças e adolescentes, que são protegidos integralmente por lei. Ela afirma que o Estatuto da Criança e do Adolescente assegura que essas vítimas são “sujeitos de direitos e que são prioridade absoluta do Estado e responsabilidade da família, da sociedade e do Estado”.
Por fim, ela reforça que a proteção das crianças e adolescentes é uma responsabilidade coletiva: “todos nós em conjunto somos corresponsáveis por esses indivíduos […] e precisamos assumir as nossas parcelas de responsabilidade no enfrentamento a todas as formas de violência contra a criança e adolescentes”.
Crime mesmo sem denúncia
A advogada Janaina Porto lembra que não é necessário haver uma denúncia formal da vítima ou da família para que o Estado atue. Ela afirma que, pela legislação brasileira, esse tipo de gestação é considerado um “forte indício de estupro de vulnerável” e deve obrigatoriamente ser comunicado às autoridades por profissionais de saúde, escolas e conselhos tutelares.
“Trata-se de um crime de ação penal pública incondicionada, ou seja, o Estado tem o dever de agir, de investigar, independentemente da vontade da vítima ou da família”, explica.
Mesmo quando a vítima nega o abuso durante o processo judicial, a investigação pode continuar. A advogada cita que é comum que a maioria negue os fatos por medo, culpa ou manipulação. Nesses casos, outros elementos de prova podem ser utilizados para sustentar a denúncia: laudos médicos, prontuários, conversas, vídeos, depoimentos de testemunhas e qualquer indício relevante.
“Nos crimes sexuais contra crianças, é comum que a vítima, por medo ou manipulação, negue os fatos posteriormente. A jurisprudência e a doutrina já reconhecem essa realidade, o que reforça a importância de uma investigação sensível, técnica e amparada em múltiplas fontes de prova”, disse a advogada.
De acordo com a profissional, a dificuldade de responsabilizar agressores, no entanto, é maior em contextos como o de municípios do interior do Amazonas, onde há “omissão de autoridades locais, e a normalização da violência sexual em contextos de vulnerabilidade social”. “Muitas vezes, há dependência econômica, medo de retaliação ou até envolvimento de pessoas influentes, o que dificulta denúncias e investigações”, observa a advogada.
Ela também menciona a precariedade das estruturas locais — como a ausência de Defensorias, delegacias especializadas e promotorias — como entrave para a responsabilização e a proteção efetiva das vítimas. Para ela, enfrentar essa realidade exige mais do que leis.
“É essencial fortalecer as redes de proteção e denúncia, capacitar agentes públicos e criar mecanismos de apoio às vítimas que vão além do processo penal — como assistência psicológica, escolar e habitacional. Sem isso, o sistema legal fica limitado, mesmo com boas leis”, finaliza.
Estado
Em nota, a Sejusc (Secretaria de Estado de Justiça, Direitos Humanos e Cidadania) informou ao ATUAL que realiza ações de prevenção à violência sexual e à gravidez na adolescência por meio de palestras educativas em escolas e atividades comunitárias sobre direitos sexuais.
Segundo o órgão, as ações da campanha Faça Bonito, em 2024, alcançaram cerca de 17 mil pessoas no Amazonas. A secretaria também destacou a implantação de sete unidades do Samic (Serviço de Apoio à Mulher, Idoso e Criança) no interior do estado, que oferecem suporte às redes municipais de proteção. Em municípios como Coari, a Sejusc atua em parceria com associações não governamentais.
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