Em queda, casamento infantil ainda é realidade; no RN, mais de 200 ocorreram em 2021
Casamento infantil no RN: o número de casos tem diminuído, mas ainda afeta principalmente meninas, sobretudo em contextos de vulnerabilidade, e a maioria dessas relações é estabelecida com indivíduos adultos, com até mais de 40 anos de idade
O casamento infantil é uma violência muitas vezes naturalizada. A Organização das Nações Unidas (ONU) o define como a união formal ou informal em que pelo menos uma das partes tenha menos de 18 anos. O número de casos tem diminuído, mas ainda afeta principalmente meninas, sobretudo em contextos de vulnerabilidade, e a maioria dessas relações é estabelecida com indivíduos adultos, com até mais de 40 anos de idade.
De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2021 (dado mais recente), 197 meninas se casaram no Rio Grande do Norte. Noventa e nove tinham 16 anos de idade e 98 casaram aos 17. Outras 310, aos 18, idade que pode ser considerada ainda precoce. Nos dados oficiais, uma tinha menos de 15 anos, mas o IBGE explicou que houve um erro de digitação e que a pessoa contabilizada com 14 anos, na verdade, tinha 24.
Sete noivos dessas adolescentes tinham entre 40 e 49 anos de idade. Vinte e cinco homens dos que casaram com essas meninas tinham entre 30 e 39 anos. Vinte e seis casaram antes dos 18. Oito, aos 16; e 17 deles tinham 17 anos de idade. Oitenta e nove se casaram ao atingirem a maioridade, com 18. Um menino também apareceu na estatística com menos de 15 anos e o IBGE confirmou tratar-se também de erro.
As informações são enviadas pelos cartórios e excluem uniões informais, maioria dos casos.
A coordenadora do Centro de Apoio Operacional às Promotorias de Justiça de Defesa da Infância, Juventude e Família, a promotora de Justiça Marília Regina Soares, lembra que “não se pode fechar os olhos pra esses relacionamentos envolvendo crianças e adolescentes.”
A relação sexual com menor de 14 anos é considerada estupro de vulnerável, mesmo que seja alegado consentimento por parte da vítima (artigo 217-A do Código Penal). A pena, definida pelo Superior Tribunal de Justiça, é de 8 a 15 anos de prisão.
Antes de 2019, a lei permitia que o criminoso de estupro de vulnerável se casasse com a vítima adolescente para não ser preso.
O juiz titular da 19ª Vara Cível da Comarca de Natal, Nílson Cavalcanti, explica que o artigo 1.520 do Código Civil flexibilizava o casamento de menores de 16 anos em dois casos: 1) para evitar imposição ou cumprimento de pena (já que a relação sexual com menor de 14 anos é crime) e 2) gravidez.
Com a Lei 13.811/19, “o artigo 1.520 foi alterado, passando a proibir o casamento de menores de 16 anos em qualquer caso, independentemente de qualquer autorização ou condição”, detalha ele. “Já o casamento de pessoas com idade entre 16 e 18 anos é permitido, desde que autorizado por ambos os pais ou representantes legais ou, no caso de divergência entre eles, haja decisão judicial que solucione o desacordo.”, completa.
Nílson Cavalcanti diz ainda que a única hipótese de realização do casamento civil de pessoa com 15 anos após a alteração do Código Civil é de erro do oficial do registro civil, que poderá responder por falta administrativa. “Nesse caso, o casamento não será anulado se houver resultado gravidez ou, ao completar a idade núbil [passível de contrair casamento], o adolescente confirme a sua intenção de casar.”
O número de casamentos de crianças e adolescentes tem reduzido. Em 10 anos, a queda foi de aproximadamente quatro vezes para o sexo feminino, saindo de 731, em 2011, para 198, em 2021.
Antes, esse fenômeno era ainda mais “comum”. Na família da maioria das pessoas, algumas mulheres se casaram ainda adolescentes. São histórias de mães, avós, tias que “fugiram” ou conseguiram consentimento dos pais para casar aos 14, 13, 12 anos de idade.
A série de registros feita pelo IBGE vai até 2003, quando 1.008 meninas se casaram no Rio Grande do Norte, sendo 29 menores de 15 anos, 64 aos 15, 430 aos 16 e 485 depois de completarem 17 anos. Nesse mesmo ano, 81 garotos casaram antes de atingir a maioridade.
Em 2003, em todo o país, 2.813 adolescentes do sexo masculino casaram enquanto 50.073 do sexo feminino começaram formalmente uma união.
Mesmo com a diminuição dos casos, o Brasil ainda ocupa o quarto lugar no mundo em casamentos infantis, em números absolutos, segundo pesquisa do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef). Fica atrás apenas de Índia, Bangladesh e Nigéria.
Psicólogo em atuação no Cedeca Casa Renascer, Gilliard Laurentino aponta que o aumento das vulnerabilidades sociais, em especial a fome, é obstáculo para a erradicação do casamento infantil.
Cedeca é o Centro de Defesa de Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes do Rio Grande do Norte, uma organização não governamental e sem fins lucrativo, que atua há 30 anos, com foco no enfrentamento à violência sexual contra crianças e adolescentes.
“Muitas famílias casam seus filhos no pensamento deles terem um futuro melhor do que tinham morando junto aos seus”, pondera o especialista, que considera outro fator determinante: a cultura da pedofilia.
“Vivemos numa sociedade muito voltada para a cultura das novinhas, em que cada vez mais a novinha é ainda mais nova. Isso se expressa na cultura, se expressa nas relações.”
A coordenadora do Observatório da População Infantojuvenil em Contextos de Violência (Obijuv), da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), professora de Psicologia Ilana Lemos de Paiva ressalta também a cultura:
“Vivemos em uma sociedade que responde a uma lógica patriarcal de objetificação dos corpos das meninas, uma sociedade também adultocêntrica em que a desigualdade de gênero reitera diversas violências contra meninas e mulheres. Esse fenômeno acaba se repetindo e continua acontecendo por mais que várias estratégias de enfrentamento estejam sendo trabalhadas nos últimos anos.”, salienta.
Consequências: aprofundamento da pobreza, baixa escolaridade, gravidez precoce
A vulnerabilidade é causa e consequência do casamento infantil. Nesse contexto, o ciclo da pobreza é mais difícil de ser rompido com a adultização infantil. Especialistas constatam que esse fenômeno gera níveis de escolaridade mais baixos e impede a evolução profissional, principalmente para as mulheres, além de uma série de outros problemas.
“Muitas meninas abandonam as escolas para cuidar da casa e de seus maridos, já que ainda é cultura em nosso país que elas sejam responsáveis pelo cuidado das casas.”, demonstra Gilliard, ressaltando também a gravidez precoce como resultado desses casamentos.
“Com a gravidez, a situação fica ainda mais difícil, porque além do sustento de uma casa, tem os cuidados e sustento de outra criança. Na adultização precoce as responsabilidades também se tornam precoces e esse ciclo é muito perigoso e traumático.”
Segundo o IBGE, em 2021, 2.829 crianças nasceram de mães adolescentes no Rio Grande do Norte, sendo 296 mães menores de 15 anos na ocasião do parto. Em todo o Brasil, os nascidos de adolescentes chegaram a 157.876, sendo 14.837 de meninas com menos de 15 anos.
A promotora de Justiça Marília lembra que além dessas meninas não terem condições financeiras e psicológicas para serem mães, muitas vezes nem biologicamente estão preparadas. “Acaba gerando um ciclo vicioso: ela engravida cedo, é mãe cedo e às vezes aquela criança não tem o acompanhamento correto e adequado, gera relações às vezes abusivas, submissas entre outras questões.”, completa.
Coordenadora do Obijuv, professora Ilana Paiva sintetiza: “São isoladas da convivência familiar e comunitária; muitas vezes têm gestações muito precoces que não correspondem a seu desenvolvimento físico; geralmente com adultos mais velhos, tem uma relação de poder estabelecida; pouca autonomia; abandonam a escola; vivenciam a violência por parte dos seus maridos; ficam responsáveis por todo o trabalho doméstico e de cuidado. Com a não autonomia financeira, ela fica ainda mais refém da situação dentro desse casamento; tem uma tendência ao empobrecimento; dificuldade de acessar o mercado de trabalho na vida adulta; e uma série de violências que só aumentam dentro desse tipo de situação.”
Proteção
“O casamento infantil é uma violação, porque você tira o direito da criança ser criança, o direito dela viver a sua infância, viver aquele momento que é necessário, passar pelas experiências de uma criança e da adolescência.”, explica a promotora Marília Regina Soares.
Documentos como a Declaração Universal dos Direitos da Criança (1959), a Convenção dos Direitos da Criança (1989) e, no Brasil, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), instituído em 1990, fazem com que crianças e adolescentes sejam reconhecidos como atores sociais e sujeitos de direitos. Dentre esses direitos, está o de brincar, algo que deve ser levado a sério pela sociedade.
“O Estatuto garante o direito de brincar, de se divertir, ao lazer, e tudo isso é suprimido quando uma criança ou um adolescente acaba se unindo a outra pessoa, assumindo posturas e responsabilidades da vida adulta.”, aponta a promotora de Justiça.
Antes do ECA eram ainda mais numerosas as uniões de homens mais velhos e meninas adolescentes e até crianças (ou seja, com menos de 12 anos).
Existe idade para o amor?
O clichê “o amor não tem idade” é muito usado para justificar a cultura da pedofilia e até mesmo a consumação dela quando estão envolvidos homem adulto e mulher adolescente. Outras vezes, a frase pode se referir a adolescentes que juntos cometem “a loucura” de se casar.
Para o juiz titular da 19ª Vara Cível da Comarca de Natal, Nílson Cavalcanti, o amor pode até começar durante a adolescência, mas ninguém deve precipitar a essa fase da vida um casamento, que requer muita responsabilidade.
“Diante de várias histórias de amor bem-sucedidas que tiveram seu início ainda na adolescência ou mesmo na velhice, não há como discordar da frase.”, comenta o juiz, lembrando que entre 12 e 18 anos de idade “os hormônios estão ‘em ebulição’ trazendo, frequentemente, grande confusão entre o que é amor e o que é atração, o que pode gerar consequências desastrosas”.
“Penso que o amor pode, sim, existir e prosperar quando surge na adolescência, mas o casamento exige maturidade. Assim, o amor deve ser paciente o suficiente para aguardar um mínimo de maturidade para que se encare o casamento e todas as alegrias e dificuldades inerentes à condução de uma família”, completa.
A coordenadora do Observatório da População Infantojuvenil em Contextos de Violência (Obijuv), da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), professora de Psicologia Ilana Lemos de Paiva também discorre sobre a frase:
“É uma afirmação bem problemática, tendo em vista que o casamento infantil, prematuro ou forçado é ainda um tema a ser enfrentado. A gente entende essas relações não como amor, mas como uma violação de crianças e adolescentes que afeta, sobretudo essas meninas e são vários os efeitos”.
Um caso em centenas, 20 anos depois
Foi “por achar que aquilo era amor verdadeiro”, que Vanessa Gomes* – chamada assim para preservar sua identidade – foi morar com Rômulo* e a família dele por volta dos 14 anos de idade. Ele tinha 18 ou 19.
Mais de 20 anos depois, Vanessa conta que muita coisa dessa época foi apagada da memória – é como um bloqueio. Ela inicia o relato dizendo que não gosta de falar sobre o assunto, mas aceita sem divulgação de seu nome. Além da exposição, o caráter psicológico pesa ao reconhecer que sofreu as violências de um casamento infantil que durou três anos e meio.
Adolescência negada, isolamento social, abandono escolar. Tudo isso e o que não lembra ou já não quer falar, está na história dela. Os pais não queriam a união e tentaram dissuadi–la, mas não a impediram.
“Sai da escola. Voltei no ano seguinte, mas tinha ‘perdido’ muita coisa. Muitas amizades se afastaram. Eu era solitária. Sabia que era por causa da situação. Parar de estudar no meio do ensino médio me abalou muito, voltar pra escola e não estar mais na mesma turma…”.
Ela diz que não lembra se ele ainda estudava, mas a família tinha recursos e abriu uma loja para o filho. O relacionamento era ruim, mas persistiam.
“Eu não me via para sempre naquela situação. Muito cedo eu percebi que aquele não seria o meu felizes para sempre, que não era com ele que eu terminaria a vida porque eu pensava muito diferente. Eu andava insatisfeita, cheguei a falar algumas vezes, mas a coisa não mudava (nem mudaria nunca). Eu já havia pensado em separar, mas era muito dependente. Não tinha coragem. Um belo dia, fui pra casa dos meus pais depois do almoço e quando liguei pra ele me buscar, a irmã atendeu dizendo que ele não me queria mais. Ela ainda passou o telefone pra ele que confirmou o que ela falava e disse que não tinha mais jeito. Meu chão se abriu, o desespero bateu e eu fiquei péssima. Queria morrer.”, conta. “Tenho uma memória (que pode não ser real) que na noite anterior a gente brigou feio e ele não queria que eu fosse pra casa dos meus pais no dia seguinte.”
A tristeza profunda durou alguns meses e, mais ou menos um ano depois, conheceu Fábio*. Entrou na faculdade, e após dois anos de namoro engravidou. Deixou a graduação. Casou. Desta vez, um casamento civil, o que acredita ser seu único casamento. “Não considero que fui casada duas vezes.”
A nova história foi vivida por uma mulher “marcada” pelo passado de violações. “Esse relacionamento foi muito moldado pela religião. Eu nunca aceitei muito bem, mas ‘era o que tinha’. Eu já tinha outra perspectiva, sempre meio questionadora, mas esses questionamentos só ficavam na minha cabeça.”, diz, lembrando que havia se convertido a uma igreja evangélica, seguindo o marido.
Quando o bebê tinha quatro meses, Vanessa ingressou em um curso técnico, mas precisou também abandoná-lo para trabalhar. Algum tempo depois, conseguiu entrar em outra graduação. No ano que concluiu, se divorciou. Fez mestrado, duas especializações e está no doutorado, enquanto também trabalha e cuida do filho.
O segundo relacionamento, já adulta, também foi de pesada sobrecarga emocional. Hoje, distante dos dois homens, acredita que não teria avançado na carreira acadêmica “de jeito nenhum” se estivesse em uma daquelas relações.
“Quando terminei a graduação, eu estava em um momento péssimo, emocionalmente destruída. Meu casamento falido e eu sabia que não queria mais estar com ele. Não me fazia bem. Eu já não estava feliz há muitos anos, mas eu mantinha aquilo ali, não sei a que me apegava. A destruição emocional que Fábio causou em mim foi tão feroz que eu não achava que conseguiria fazer uma prova de mestrado e passar. Ou, se por zebra eu passasse, não ia conseguir passar nas disciplinas, concluir, fazer os trabalhos. Pensava que eu não tinha capacidade de fazer nada”, lamenta.
“Eu fui invalidada. Fui tão reprimida, que até hoje eu digo que sou uma fraude. Digo que terminei meu mestrado porque foi na pandemia, sempre tenho um porquê pra explicar por que consegui algo. Quando percebo que faço isso, lembro automaticamente de Fábio. Isso é herança do meu casamento, toda essa insegurança, medo de não darem certo as coisas que tento na vida. Eu tenho orgulho das coisas que fiz, mas falta muito e não acho que foi grande coisa.”
Vanessa diz que ter 35 anos, não ter estabilidade financeira e morar na casa dos pais são fatores que a abalam junto à memória das relações.
“Ter um companheiro não é uma condição sine qua non na minha vida, apesar de ser uma coisa que desejo. Mas o essencial pra mim hoje é ser aprovada em um concurso, ter condições de dar a minha filha o que ela precisa”, conclui, expressando ainda uma vontade que é um dos fatores que leva muitas meninas ao casamento, a de sair da casa dos pais, pra onde voltou após a segunda separação. “Eles não me sufocam, mas não estou completamente à vontade”.
Para saber mais sobre o direitos das crianças, conheça a newsletter Infância na Mídia.