Escolas infantis particulares de BH encontram brecha em decreto e têm aval para abrir como espaço recreativo
Logo que começou 2021, a bancária Camila* precisou tomar uma decisão difícil e colocar o filho caçula Bernardo*, de 2 anos, numa escola infantil perto de casa, no bairro Fernão Dias, na Região Nordeste de Belo Horizonte. A instituição está funcionando como espaço recreativo, mesmo sem a permissão da prefeitura para a retomada das aulas presenciais. “Para ele brincar, desenvolver, foi ótimo. Ele está mais tranquilo. Mas ainda não falaram comigo sobre os cuidados que estão tendo em relação ao coronavírus. Vi que usam máscara e tem álcool gel”, disse a mãe.
De março a dezembro do ano passado, Bernardo* ficou fora da escola por causa da pandemia do novo coronavírus. Sem poder parar de trabalhar, Camila*, passou a deixar o filho sob os cuidados dos avós, que são do grupo de risco para desenvolver formas graves da Covid-19. “Mas eles estavam ficando muito cansados. Minha mãe continuou trabalhando. Meu pai, quando eu chegava para buscá-lo, estava com o cabelo literalmente pra cima. E o Bernardo chegou numa fase que estava gritando, ficando muito nervoso, tudo irritava ele”, lembra.
A história de Camila não é exceção. Por causa da procura de famílias que não têm com quem deixar as crianças, muitas escolas particulares estão voltando a abrir as portas como espaços de recreação, com aval da própria prefeitura de Belo Horizonte. Para isso, elas alteram a atividade cadastrada na Classificação Nacional de Atividades Econômicas (CNAE) para espaços de recreação. Após formalizar a mudança na Junta Comercial do Estado (Jucemg), estas instituições obtém novo alvará na PBH, que as enquadram na categoria “clubes de serviço, lazer, sociais, esportivos e similares”.
Este tipo de atividade teve autorização formal para funcionar em dois momentos ao longo da pandemia. O primeiro, em setembro, depois de mais de seis meses fechados em função da pandemia. A autorização foi suspensa em janeiro, quando a prefeitura determinou que apenas os serviços essenciais poderiam abrir na capital. E, agora, desde o final do último mês, estão novamente autorizados pelo decreto 17.536.
A prefeitura de Belo Horizonte confirmou ao G1 que tem conhecimento da adaptação das escolas infantis em espaços recreativos. “Esta adaptação das instituições de ensino é um novo fenômeno e ocupa uma pequena parte das unidades da cidade. E, portanto, não representa o impacto comparável ao retorno de 100% dos alunos às aulas presenciais”, disse a administração municipal.
Identificando-se como “hotelzinho”, uma escola infantil particular está funcionando de 7h às 19h, no bairro São Paulo, também na Região Nordeste. Ao telefone, uma funcionária confirmou que não pode abrir como escola, mas que tem permissão para funcionar como espaço recreativo. “Uma empresa de gestão de saúde foi contratada para estabelecer os protocolos de cuidados com a Covid-19. As crianças tiram o sapato antes de entrar, têm a temperatura aferida. Cada criança fica dentro de sua ‘bolha’, não se mistura com outras turmas”, falou.
Do outro lado da cidade, no bairro Buritis, uma outra escola de educação infantil também está recebendo crianças, sob alegação de que tem permissão para funcionar como espaço recreativo. Uma funcionária informou que as turmas têm, no máximo, 12 crianças e que as maiores de 3 anos usam máscara. Ela garantiu que adota protocolos rígidos de higienização do espaço. A prefeitura disse que não sabe quantas escolas em BH estão funcionando como espaços recreativos, embora seja responsável pela emissão de um novo alvará para as empresas que mudam a atividade no CNAE. Mas garantiu que faz a fiscalização e que, caso “identifique um volume considerável de casos de aglomeração e de risco considerado relevante para a vigilância em saúde, medidas mais restritivas poderão ser adotadas”. A Junta Comercial do Estado de Minas Gerais (Jucemg) disse que não pode disponibilizar dados estratificados, como atividade econômica específica.
Abismo social
Crianças de 0 a 5 anos da rede municipal não tiveram aulas remotas ao longo de todo o ano passado, nem puderam voltar a frequentar a escola, mesmo que só para recreação. Segundo a Secretaria Municipal de Educação, a adequação destas escolas para o período de pandemia ainda está em andamento. De acordo com a pasta, estas adaptações estão na fase final.
A pedagoga, advogada e coordenadora da Escola de Contas do Tribunal de Contas do Estado (TCE), Naila Mourthé, acredita que a possibilidade dada apenas a algumas crianças de retornar ao convívio de outras da mesma idade, mesmo que somente para recreação, escancara uma desigualdade social que tende a aumentar ainda mais. Ela foi responsável por um levantamento feito no ano passado para detectar os impactos da pandemia na vida de estudantes mineiros. “Estes locais são espaços de convivência e, principalmente, espaço de aprendizagem coletiva, que é extremamente relevante para esta faixa etária. Esta oportunidade está sendo oferecida para uma camada da população, que já tem acesso a oportunidades diversas, e não é oferecida para crianças que mais precisam deste tipo de estímulo e que, vão sim, sofrer prejuízos em decorrência disso”, falou.
O professor do Núcleo de Estudos e Pesquisa sobre Infância e Educação Infantil (Nepei) da UFMG Levindo Carvalho reforçou que, privadas há um ano de qualquer acesso à educação, as crianças de escolas públicas são as que vão mais sofrer os impactos da pandemia. “A gente tem que pensar que o que tem acontecido é um paradoxo na oferta da educação. Neste contexto da crise sanitária, a educação não foi entendida como serviço essencial, se a gente for pensar no direito das crianças de acesso ao ensino. Elas têm sido as menos ouvidas. Para piorar, no início da pandemia foi dada atribuição de que elas poderiam contaminar os mais velhos”, afirmou.
Para o pesquisador, a oferta de espaços recreativos, mais que atender a uma demanda dos pais e à necessidade econômica das próprias instituições, é resultado da falta de priorização do ensino entre as políticas públicas. “Esta oferta é um sintoma da falta de direcionamento do poder público para garantir o direito do acesso das crianças à educação. Mas o que tem acontecido é a precarização deste acesso. Muitas têm contratado pessoas sem formação para acolhimento e educação das crianças, em um momento tão grave precisávamos de profissionais qualificados, com dinâmica de atendimento que garanta segurança destas crianças”, ponderou.
O G1 pede, insistentemente, entrevista com a secretária Municipal de Educação Angela Dalben ou outro representante da pasta, desde a última segunda-feira (24), para tratar dos assuntos divulgados série de reportagens. A prefeitura não respondeu.
Para o infectologista que atua no Comitê de Enfrentamento à Covid-19, Carlos Starling, colocar a criança nestes espaços, embora não seja ilegal, pode, sim, representar riscos. “As pessoas tentam burlar toda forma regras de controle da pandemia. Todo e qualquer tipo de aglomeração, mesmo controlada, implica em riscos. Este é o risco que estas escolas correm e os pais que levam as crianças também correm. As pessoas têm que saber que risco estão impondo a outras pessoas e à própria comunidade.”
Starling vê com preocupação os impactos que a novas variante do novo coronavírus pode ter sobre as crianças. “Ela acomete pessoas mais jovens com frequência maior que a cepa anterior . Exemplo clássico que nós temos disso foi a ocorrência de nove óbitos de crianças yanomamis no Amazonas. Existem muitas incertezas”, disse. A prefeitura disse que, desde o início da pandemia, dez instituições de ensino foram notificadas por descumprimento dos protocolos sanitários que tratam da Covid-19. Não houve aplicação de multa.
*Camila e Bernardo são nomes fictícios. A entrevistada preferiu não se identificar