‘Estreitar relações entre a saúde e educação’ pode ajudar a conter sofrimento psíquico entre jovens, diz estudo
Mais do que um lugar para passar parte do dia e assistir a aulas, a escola também é um ambiente de proteção para a criança onde ela pode pedir ajuda. Ao mesmo tempo, é um espaço gerador de sofrimento, no qual questões sociais como racismo, desigualdade e homofobia acabam sendo refletidas em episódios de bullying. Nesse contexto, abrir espaços de escuta, aproximar os familiares e favorecer o protagonismo dos estudantes podem ser estratégias para a promoção da saúde mental nas escolas.
Foi sobre esse tema que Vládia Jucá, doutora em Saúde Coletiva e professora do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Ceará (UFC), debruçou-se para a produção da Síntese de Evidências “Promoção de Saúde Mental no Contexto Escolar”. Lançado em janeiro de 2025, o documento é uma realização do D3e – Dados para um Debate Democrático na Educação em parceria com a B3 Social e a Fundação José Luiz Egydio Setúbal.
O objetivo deste estudo, segundo a pesquisadora, é reunir o material bibliográfico sobre o tema de forma crítica e, a partir disso, construir recomendações para a construção de políticas públicas. “Geralmente, associamos evidências a dados quantitativos, mas também podem ser evidências de natureza qualitativa. Por exemplo, trabalhos realizados que têm sido efetivos na promoção do cuidado, na promoção do bem-estar”, afirma.
A publicação aponta caminhos para lidar com esse assunto — tanto na esfera do poder público quanto em unidades escolares — e surge em um cenário de crescente adoecimento entre os mais jovens. Um levantamento do Ministério da Saúde, por exemplo, mostra que o número de atendimentos a crianças e adolescentes com ansiedade no Sistema Único de Saúde (SUS), em todo o Brasil, aumentou mais de 17 vezes entre 2014 e 2024.
No início da série histórica, foram cerca de 5,5 mil atendimentos — somando as faixas etárias de até 9 anos; de 10 a 14 anos; e de 15 a 19 anos — devido a transtorno de pânico, ansiedade generalizada e outros transtornos ansiosos. Uma década depois, esse número cresceu 1.614% e passou de 93,5 mil.
Considerando todas as faixas etárias, o maior aumento ao longo desse período ocorreu entre adolescentes de 15 a 19 anos. De 1.534 registros em 2014, houve um salto para 53.514 atendimentos a esse público no ano passado — 3.388% a mais.
Já em números absolutos, são usuários do SUS de 20 a 29 anos que concentram a maior quantidade de procedimentos ambulatoriais relacionados à ansiedade, desde 2019. Nos anos anteriores, eram aqueles de 30 a 39 anos e de 40 a 49 anos que alternavam o primeiro lugar no total de registros.
Promoção da saúde mental
Com o aumento de transtornos mentais entre os mais jovens, as escolas passam a encaminhar os casos ao sistema de saúde, o que nem sempre resolve as questões vivenciadas na instituição. Com isso, o estudo apresenta outra possibilidade de trabalhar o assunto, por meio do “estreitamento das relações entre a saúde e a educação em um diálogo intersetorial que não se restringe aos encaminhamentos”.
É nesse cenário que se apresenta a importância de atuar na perspectiva de promoção da saúde mental, cuidando antes que o sofrimento psíquico surja ou se agrave. Desenvolvida entre as décadas de 1980 e 1990, a ideia de promoção da saúde concebe esse estado como um direito fundamental, e não apenas como ausência de doença. O propósito é assegurar o acesso a políticas públicas que promovam qualidade de vida.
“Isso (surgiu) muito articulado ao debate sobre a importância da Atenção Primária à Saúde. As estratégias da Saúde da Família, as Unidades Básicas de Saúde, tal como conhecemos hoje, nascem dessa inquietação com um cuidar que chegue antes do adoecimento”, explica a professora Vládia Jucá.
Da mesma forma, a promoção da saúde mental pretende cuidar antes que o adoecimento ocorra ou se intensifique e leva em consideração tanto a singularidade de cada pessoa — onde ela vive, as possibilidades de lazer que têm, entre outras — quanto questões coletivas. “Interessa menos os transtornos diagnosticados com base nos sistemas de classificação médicos e mais o sofrimento psíquico e seus determinantes sociais”, diz o documento.
Entre os determinantes sociais, a professora chama atenção para o impacto da violência na saúde mental de crianças e adolescentes. Essa influência ocorre desde a vivência de situações de bullying ou de racismo até a exposição a violência doméstica, disputa por território entre facções, entre outras.
A fome, o racismo, as relações de gênero, a presença de violência extrema no território onde se habita são exemplos de determinantes sociais e culturais da saúde mental. No caso de crianças e adolescentes, a faixa etária precisa ser considerada. Portanto, ter ou não saúde mental não depende apenas do indivíduo, mas exige uma análise cuidadosa dos contextos de vida e da presença/ausência de redes formais e informais de proteção e cuidado.
Estratégias importantes
A Síntese de Evidências “Promoção de Saúde Mental no Contexto Escolar” contextualiza que, no SUS, esse tema está ancorado principalmente na Estratégia de Saúde da Família e nos Centros de Atenção Psicossocial (Caps). Porém, o documento destaca a necessidade de um trabalho conjunto e intersetorial. Para lidar com crianças e adolescentes, a Educação, o Sistema Único de Assistência Social (Suas) e a Justiça também precisam estar envolvidos.
O texto aponta o Modelo de Apoio à Transição (MAT), desenvolvido em Pojuca, na região metropolitana de Salvador, como uma ação bem-sucedida. A iniciativa realiza o mapeamento e a construção de redes intrasetoriais — no setor da educação — e intersetoriais para dar apoio aos estudantes na passagem do 5º para o 6º ano do ensino fundamental.
Segundo a autora, tanto a passagem da infância para a adolescência quanto as mudanças de ciclos escolares são períodos com maiores índices de diagnóstico de transtornos mentais. Com isso, o Modelo busca facilitar esse processo com ações como acolhimento dos estudantes e dos responsáveis; diagnóstico inicial para ajuste de planejamento das unidades letivas e enturmação em formato específico para ingressantes.
Além disso, outros aspectos destacados são a interação do setor de saúde com a comunidade escolar e a criação de espaços para ouvir os jovens. A pesquisadora esclarece, porém, que não se trata de promover uma escuta “clínica” como a psicoterapia.
“Ficamos achando que todo mundo precisa de psicólogo, mas não é bem assim, tem outras ações que podem ser feitas e que também significam cuidado. Ter grupos temáticos, oficinas temáticas, poder agenciar e fortalecer os coletivos juvenis, todas são formas de a gente trabalhar na direção da promoção da saúde mental”, finaliza.
Recomendações para a promoção da saúde mental no contexto escolar:
- Realizar conversas com os estudantes sobre os direitos estabelecidos no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e sobre a rede a qual podem recorrer nos casos de violação destes direitos. De preferência, convidar profissionais da rede para colaborar participando de espaços coletivos.
- Desenvolver ações intersetoriais de promoção da saúde, sensíveis aos determinantes sociais da saúde, inclusive com projetos cujo cerne seja o enfrentamento às diversas formas de violência presentes no cotidiano escolar.
- Realizar ações que fortaleçam os laços de solidariedade entre os membros da escola e destes com as comunidades — aquela onde está a escola, bem como aquelas que abrigam os estudantes.
- Implementar estratégias para maior aproximação com as famílias, para além das reuniões de pais. Nesta direção, a promoção de atividades culturais, de esporte e de lazer podem ser uma via interessante, desde que se considerem as realidades socioculturais das famílias envolvidas.
- Fortalecer o protagonismo dos estudantes, criando com eles espaços para o exercício da cidadania e do diálogo com a gestão. A assembleia de alunos e o fortalecimento dos espaços de representação estudantil são fundamentais nesse sentido.
- Desenvolver ações de proteção aos direitos de crianças e adolescentes com a rede intersetorial na qual a escola representa um dos setores envolvidos.
Recomendações para a construção de políticas públicas:
- Criar políticas federais/estaduais de incentivo para estudos que abordem a escola de modo mais integrado aos contextos socioculturais em que se inserem a fim de:
- Conhecer os territórios onde habitam e circulam seus estudantes, com seus recursos e suas dificuldades;
- Mapear possíveis espaços e equipamentos para a construção de redes intersetoriais;
- Construir projetos para movimentar o trabalho em rede.
- Propor editais para a realização de projetos, por meio dos quais as universidades possam, em parceria com as escolas (rede intrasetorial), apoiar o estabelecimento de uma cultura de promoção da saúde na escola de natureza intersetorial. É fundamental que sejam projetos abertos para que a construção aconteça junto à escola, no lugar de soluções prontas e descontextualizadas. O modelo de apoio matricial do SUS pode servir de inspiração.
- Investir em estratégias destinadas a fornecer subsídios para que a escola possa realizar o trabalho territorial, sobretudo no que diz respeito aos deslocamentos necessários e contabilizando as atividades de mapeamento e construção de redes como parte integrante e fundamental do trabalho.
- Instituir políticas de incentivo no âmbito das secretarias municipais de educação para a criação de fóruns intersetoriais que envolvam os atores da rede de proteção e assistência a crianças e adolescentes.
- Pensar estratégias que valorizem e incentivem os trabalhos de redução de danos, e que considerem a parceria entre as escolas e os CAPS para o cuidado dos usuários de álcool e outras drogas.
- Criar modos de levantamento das experiências bem-sucedidas de enfrentamento ao racismo, à discriminação de gênero e de orientação sexual.
- Desenvolver políticas, em âmbito nacional, que priorizem a inserção e a permanência de pessoas com deficiência e trabalhem para reduzir a desigualdade social.
Para saber mais sobre o direitos das crianças, conheça a newsletter Infância na Mídia.