Familiares de crianças e adolescentes mortos em operações da Polícia se mobilizam por Justiça

Veículo: O Globo - RJ
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As mortes de Emilly e Rebecca, de 4 e 7 anos, baleadas em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, ainda repercutiam quando Deise Carvalho começou a pendurar cartazes na sala de sua casa. Era 10 de dezembro do ano passado e Deise, aos 48 anos, estava prestes a defender, via videoconferência diretamente da Favela da Muzema, no Rio, sua monografia no curso de Direito. O tema: crianças e adolescentes vítimas da polícia — a mesma que tirou dela o filho Andrew, então com 17 anos, em 2008.

A motivação para entrar no curso de Direito não poderia ter sido outra se não a vontade de entender por que Andrew, detido numa delegacia por suspeita de roubo a um coronel da PM, sem provas, foi torturado até a morte, num episódio que jamais rendeu responsabilização aos autores do crime.

— Eu queria entender por que o Judiciário não fazia Justiça no caso de um adolescente que estava sob a tutela do próprio Estado— afirmou Deise.

Milhares de outras mães pelo Brasil que tiveram seus filhos assassinados pelo Estado brasileiro fizeram da luta por Justiça o tema de suas vidas. Entre 2017 e 2019, policiais mataram ao menos 2.215 crianças e adolescentes no país, segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP).

As primas Emilly e Rebecca Santos brincavam na porta de casa quando foram baleadas. A Polícia Civil apreendeu fuzis e pistolas de equipe da PM que estava no local, mas a corporação nega o disparo.

A brutalidade com que o Estado trata a juventude, principalmente a preta, pobre e periférica, fez brotar pelo país dezenas de redes e coletivos, formados por mães e familiares dessas vítimas. Deise Carvalho é fundadora de seu próprio coletivo, o Núcleo de Mães Vítimas de Violência, que visa dar suporte emocional a outras famílias e mantê-las unidas na longa jornada por responsabilização dos algozes de seus filhos.

Por todo o Brasil, 28 dessas redes estão reunidas sob o guarda-chuva da Rede Nacional de Familiares de Vítimas do Terrorismo do Estado. Existem, entretanto, outros grupos dispersos. O GLOBO contabilizou 37 deles, como as Mães do Xingu e o Coletivo de Mães do Rio Grande do Norte.

Grande parte desses coletivos está concentrada no Estado do Rio, cuja taxa de mortalidade por intervenção policial a cada 100 mil habitantes (10,5) só perde para o Amapá (14,3), de acordo com dados mais recentes do Anuário Brasileiro de Segurança Pública.

As estatísticas oficiais no Estado do Rio, disponibilizadas pelo Instituto de Segurança Pública (ISP), revelam um obstáculo para maior transparência de mortes cometidas pela polícia.

No ano de 2019, em 50,3% das 1.814 mortes causadas por policiais no estado não havia detalhamento da idade da vítima, por exemplo. A proporção cai para 25,6% em casos de homicídio doloso, para 4,4% nos casos de lesão corporal seguida de morte, e para 1,7% nos casos de latrocínio.

Sem o preenchimento das informações não é possível um completo levantamento estatístico sobre o perfil das vítimas de agentes do Estado, como Ágatha Félix, de 8 anos, morta com um tiro da PM quando voltava para casa da escola no Complexo do Alemão, em 2019.

Não consta no sistema do ISP nenhuma vítima de morte por intervenção por agente do Estado na área onde ela foi morta, o 22º DP, apesar das evidências — o Ministério Público do Rio denunciou o policial militar Rodrigo José de Matos Soares, em dezembro daquele ano, por homicídio qualificado, mas até hoje não foi realizada a audiência para ouvi-lo, e ele continua fazendo trabalhos burocráticos na Diretoria de Veteranos e Pensionistas (DVP).

Leonardo Carvalho, pesquisador do Instituto Sou da Paz, diz que esses dados, ainda que eventualmente não possam ser coletados logo após o crime, deveriam ser preenchidos ao longo da investigação.

—Os dados que alimentam as estatísticas criminais vêm dos registros de ocorrências da Polícia Civil. O que precisamos entender é como a investigação se desenvolve sem essa complementação posterior nos casos de mortes por intervenção de agente do Estado, uma vez que nos casos de mortes violentas as informações podem ser obtidas por meio de familiares e outras fontes — diz ele.

No ano passado, considerando o apagão de dados para mais da metade dos casos, 6,6% das vítimas (120) da polícia eram jovens entre 12 e 17 anos. O período em que mais a PM matou foi na parte da manhã (em 34,3% das vezes), às quartas-feiras (17,7%), no mês de julho (197 vítimas). Os autores dos crimes têm favoritos: 78,5% das vítimas de policiais do Rio, em 2019, eram negras.

O cenário não mudou em 2020. O estado registrou 313 mortes violentas apenas no primeiro semestre, das quais 99 foram decorrentes de intervenção policial, segundo dados do FBSP. Destas, 80 eram de pessoas negras.

Mesma lógica em SP

A pedido do GLOBO, o FBSP levantou também números de São Paulo. A lógica se mantém. A proporção de casos de vítimas com idade não informada aumenta quando eles são cometidos pela polícia. Enquanto em 16,4% de casos de homicídio doloso não constam essas informações, a taxa é de 28,5% quando decorridos de intervenção policial.

— O crime que tem o pior preenchimento de dados é o causado por policiais. Se o Estado tirou a vida de alguém, é esse caso que deveria ter a maior quantidade de dados — afirma a diretora-executiva do FBSP, Samira Bueno.

Esses dados mostram também que os alvos preferenciais da polícia costumam ser mais jovens do que aqueles atingidos pela violência de uma maneira geral. Entre as vítimas de homicídio doloso, por exemplo, 7,8% têm entre 12 e 19 anos, 30% têm entre 20 e 29 anos, e 61,1%, mais de 30 anos.

Quando é a polícia quem mata, 21,1% das vítimas possuem entre 12 e 19 anos, 43,6% têm entre 20 e 29 anos, e essa taxa cai para 35,3% entre aqueles com mais de 30 anos.

No Rio, o padrão se mantém: 81,6% das vítimas da polícia têm 29 anos ou menos, enquanto essa taxa é de 52% entre os casos de homicídio doloso.

—Existe uma certa criminalização, um olhar de estigma em relação à juventude, um certo estereótipo do sujeito criminoso que passa pelos atributos menino da favela que anda de boné, bermuda e chinelo, ouvindo funk. É como se ele ganhasse um selo de potencial criminoso — diz Samira Bueno.