Futuro em ebulição: especial do Correio mostra como crise climática afetará crianças
Uma criança nascida daqui a 25 anos enfrentará o desafio de ser uma sobrevivente climática. Dois mil e cinquenta é a data estabelecida pelo Acordo de Paris para a neutralidade de carbono — quando a soma das emissões de gases de efeito estufa deverá ser igual à capacidade de removê-los da atmosfera. Mesmo se a meta for alcançada — e dificilmente será, segundo projeções baseadas na falta de progresso atual —, o mundo terá se tornado um lugar muito mais inóspito do que o conhecido pelas gerações anteriores.
Em 2050, a Terra estará, no mínimo, 1,7ºC mais quente do que no fim do século 19: 0,2ºC acima do registrado hoje, quando batemos, por dois anos consecutivos, o recorde de calor atmosférico. Comparado à geração Z, um bebê nascido em 2050 estará oito vezes mais exposto a ondas de calor extremas. O risco de testemunhar incêndios florestais graves será duas vezes maior; haverá o triplo de probabilidade de enchentes, e 1,3 mais crianças enfrentarão secas severas.
Nem é preciso dar um salto no tempo para sentir o impacto da crise climática na saúde infantojuvenil no mundo. Um levantamento da Fundação Osvaldo Cruz (Fiocruz) e da universidade fluminense Unifase, por exemplo, detectou um aumento de 24% nas internações de bebês por pneumonia, bronquite e bronquiolite em unidades do Sistema Único de Saúde (SUS), entre 2022 e 2023. Na cidade chinesa de Guangzhou, ondas de calor sucessivas foram associadas a 23,8% mais casos de ferimentos em pré-escolares. Na área rural de Uganda, secas extremas reduziram o suprimento de calorias das dietas infantis em 67%, e uma diminuição de 10% na ingestão de zinco aumentou em até 3,5 pontos a probabilidade de nanismo.
Segundo o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), praticamente todas as crianças do mundo — 2,3 bilhões, em 2023 — estão expostas a algum perigo ambiental e/ou climático, sendo que, hoje, uma em cada três vive em regiões com risco elevado. Somente no Brasil, há 40 milhões de meninos e meninas nessa categoria.
De hoje a quarta-feira, uma série de reportagens do Correio mostra como a crise climática impacta negativamente a saúde de crianças e adolescentes, ameaçadas por um planeta cada vez mais insalubre devido às atividades humanas.
Vulnerabilidade
Crianças são particularmente vulneráveis aos efeitos das mudanças climáticas: elas inspiram um volume maior de ar do que os adultos (e, consequentemente, mais partículas poluentes); o sistema imunológico está em formação, por isso, têm quadros mais graves de doenças infecciosas; seu metabolismo é mais acelerado, o que as coloca em maior risco de superaquecimento em altas temperaturas. A exposição prejudicial começa antes do nascimento: um estudo da Universidade de Sydney, na Austrália, demonstrou que cada 1ºC de aumento na temperatura eleva em 5% a chance de parto prematuro ou natimorto.
“Na gestação, se a mãe estiver exposta a um volume significativo de ar poluído, haverá impacto na saúde da placenta, prejudicando a nutrição do feto e do bebê”, atesta Carlos Augusto Mello da Silva, presidente do Departamento Científico de Toxicologia e Saúde Ambiental da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP). “Outros estudos mostraram que na gestação e nos primeiros anos de vida, a poluição atmosférica reduz o volume pulmonar”, diz o médico, que também é consultor da Organização Pan-Americana da Saúde (Opas).
“Quem está nascendo hoje vai passar a vida inteira sob pressão da crise climática”, observa Fernando Celso Lopes Fernandes de Barros, especialista em epidemiologia, com ênfase na saúde materno-infantil e membro da Academia Brasileira de Ciências (ABC). “As crianças começam a sentir agora e passarão toda a infância e adolescência sob risco, se não houver uma mudança muito clara de prioridade.”
O médico e pesquisador destaca algumas dessas pressões: “Além da poluição atmosférica e dos alérgenos, que aumentam asma e pneumonia, há o risco do aumento de doenças transmitidas por vetores, como dengue e malária”, diz. “Com a elevação da temperatura, também temos as diarreias, provocadas tanto por bactérias como vírus, além da insegurança alimentar. É uma tragédia”, avalia Fernandes de Barros.
Calor
Os recordes de temperatura atmosférica e oceânica batidos mês a mês desde 2023 têm aumentado as pesquisas sobre o tema: o PubMed, um dos maiores indexadores da literatura médica, registra um crescimento crescente nas publicações com a palavra-chave calor; eram 13,6 mil há uma década, e passaram para 20,2 mil no ano passado. Somente nos três primeiros meses de 2025, já foram divulgados 5.140 artigos.
Uma dessas pesquisas recentes reviu a produção científica sobre os efeitos de ondas de calor exclusivamente na saúde das crianças, com a avaliação de artigos publicados entre 2013 e 2023. Além de um aumento nas hospitalizações por todas as causas entre pacientes pediátricos, os pesquisadores encontraram associação entre altas temperaturas e doença cardiovascular congênita, desnutrição e sépsis, fora a já bem documentada relação com enfermidades respiratórias.
“O aumento de eventos de calor extremo impacta as crianças mais severamente do que os adultos devido à sua fisiologia, crescimento e desenvolvimento únicos”, escreveram os autores norte-americanos, no artigo publicado no Journal of Climate Change and Health. Um ponto destacado pelos pesquisadores é que, na literatura revista, crianças e adolescentes de países e regiões mais pobres foram os mais afetados.
COP30
Em novembro, o Brasil sediará a Conferência das Partes das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas em Belém (COP30). O objetivo principal do evento é colocar em prática o Acordo de Paris, um documento de 2015, que visa reduzir a emissão de gases de efeito estufa e, assim, limitar o aumento da temperatura a 1,5ºC em relação aos níveis pré-industriais. Desde 2023, a agenda oficial do evento inclui discussões sobre mudanças climáticas e saúde humana.
Para saber mais sobre o direitos das crianças, conheça a newsletter Infância na Mídia.