Homens que cresceram sem a presença dos pais dão outro sentido à paternidade
Homens que cresceram sem a presença dos pais: na ordem de não repetir o que sofreram, os pais desempenham a obrigação de pais com o intuito de dar aos filhos ‘aquilo que não tiveram’
“Quero dar aquilo que eu não tive.” Em algum momento, durante uma conversa sobre paternidade, essa frase ou outras sentenças que trazem significado próximo são elaboradas por José Lúcio de Siqueira, 57; Cliverton Walace Ferreira, 36; João Otávio, 32; e Matheus Palmeira, 27. Todos passaram por algo parecido durante a infância e adolescência: conviveram pouquíssimo ou nada com os pais e, agora que são eles mesmos pais, tentam, cada um ao seu modo, fazer diferente.
Os pais de Cliverton, assim como os de Matheus, se separaram quando eles ainda eram crianças. O primeiro conta que a demanda de trabalho do pai era muito grande, então se viam e conviviam muito pouco, mesmo morando na mesma cidade. O segundo, por sua vez, relembra que após a separação, a mãe mudou de cidade – de Além Paraíba para São Paulo – quando ele tinha pouco mais de 1 ano. Foram dez anos até retornar para Minas Gerais, em Pequeri, cidade próxima a Além Paraíba. Longe ou perto, o pai não mantinha contato.
“Na minha infância, acho que o que mais era difícil eram as fases na escola quando aconteciam dinâmicas de Dia dos Pais ou algumas atividades familiares, onde eu não tinha a presença do meu pai”, conta Matheus. “Por ser um menino naquela época, ver meus amigos acompanhados por seus pais era como se estivesse faltando uma parte de mim. Isso, de certa forma, me fazia sentir que algo estava incompleto, como se minha família não fosse completa.
João Otávio também foi criado pela mãe, que engravidou quando ela e o pai eram adolescentes e não tinham nenhum relacionamento. O homem apenas o registrou. “Minha mãe desempenhou o papel de pai e mãe, nunca deixou faltar nada e sempre tivemos uma conexão muito boa”, diz. O Brasil, segundo estudo realizado no ano passado pelo Instituto Brasileiro de Economia, da Fundação Getúlio Vargas, tem 11,3 milhões de mães solo. O número cresceu cerca de 17,8% em relação a 2012.
Separação compulsória
A pouca convivência entre José Lúcio e o pai não foi uma escolha parental, mas do Estado. “Assim que eu nasci, fui mandado para um preventório em Juiz de Fora, pois os filhos não podiam conviver com os pais que tinham hanseníase naquela época”, relembra. Isso foi na década de 1960. Os pais de José Lúcio se conheceram na Colônia Padre Damião, casa de saúde na cidade de Ubá onde eram isolados os hansenianos. A mãe veio da Bahia, e o pai, do município de Manhumirim, em Minas Gerais, onde havia se separado da ex-esposa e de três filhos.
Quando a proibição da convivência chegou ao fim, José Lúcio já tinha 13 anos. “Meu pai resolveu ficar por aqui mesmo – em Ubá – e formar família. Ele e minha mãe buscaram a mim e a meu irmão no preventório, mas convivemos pouco com meu pai, apenas uns quatro meses”. Por conta de intercorrências na saúde, o pai de José Lúcio acabou falecendo.
Presenças saudáveis
Diante dos desafios que a paternidade impõe, a vontade de fazer diferente, de “dar aquilo que não teve”, propulsiona esses pais com quem conversamos. Matheus e João Otávio não têm um relacionamento amoroso com as mães de seus filhos. No entanto, eles dizem não repetir a ausência paterna que fez parte de suas vidas. E, segundo eles, não basta “apenas estar presente”, é preciso participar da vida dos filhos.
“O Enzo escolhe com quem quer ficar. O dia que ele quer ficar com a mãe, ele fica. O dia que ele quer ficar comigo, ele fica”, relata João Otávio, sobre a guarda do filho. A vontade do garoto permanece diante do acordo entre os pais, sem a necessidade de qualquer trâmite. “Não quero que Enzo pense que eu tenho a obrigação de fazer meu papel de pai, quero que ele tenha a mesma conexão que eu tenho com minha mãe, algo puro, que ele possa saber que, além de pai, eu sou amigo dele”, completa, sobre a relação com o filho.
Como a vontade de ser pai sempre o atravessou, João relata que, desde que soube do nascimento do filho, encara a paternidade com leveza e entusiasmo. Entre as atividades “clichês” de pai e filho, estão levar o garoto ao parque, ao futebol, à praça. Coisas simples, que talvez passem despercebidas no cotidiano de quem as pratica, mas com valor simbólico enorme para quem não teve a chance de sequer desfrutar isso junto à figura paterna. Os dois ainda praticam jiu-jítsu juntos, o que gera conexão e dá certo tom à relação entre pai e filho. “Comigo ele adora brincar de lutinha”, relata, bem-humorado.
Inspiração materna
Matheus, pai da Júlia, conta que sua percepção sobre a vida mudou depois do nascimento da filha. “Comecei a ter outra visão sobre minha missão aqui na Terra, que é a de cuidar e amar alguém incondicionalmente. Ela é a parte mais importante da minha vida, na verdade, é por ela que me esforço todos os dias para garantir sua felicidade. Tento dar a ela o que não tive quando era criança. Uma das coisas que mais gostamos de fazer juntos é lanchar e brincar com massinha, ou jogar algum jogo desafiador como montar blocos ou quebra-cabeça. Às vezes, também conto algumas histórias para que ela sempre se lembre de mim.”
Para o jovem, a ausência da figura paterna na infância é algo que ele não quer para a vida da filha. “A sensação e a insegurança de não ter alguém ao meu lado é algo que eu não desejo para minha filha. Por isso, tento ser o mais presente possível, para que ela se sinta segura. Procuro dar a minha total atenção a ela, tento passar o máximo de conhecimento possível e também a proteção para que ela se sinta amada por mim”, salienta.
A inspiração para a paternidade, segundo ele, vem da mãe. “Falar isso pode soar clichê, mas foi ela quem preencheu todas as lacunas afetivas e de responsabilidade que um pai normalmente cumpriria. Na verdade, ela desempenhou os papéis de pai e mãe simultaneamente e me ensinou o que significa cuidar de alguém e como compartilhar o amor de uma mãe e um pai com um filho”.
Mais calmo e focado
Casado e pai de dois filhos, Alice e Rafael, Cliverton considera que a paternidade o tornou uma pessoa melhor. “Fiquei mais calmo e foquei mais em meus objetivos para proporcionar uma vida melhor aos meus filhos.” Segundo ele, mesmo com a alta demanda de trabalho, o tempo para se dedicar às crianças não falta. “Gostamos de brincar, ler e conversar”, diz, sobre os momentos com os filhos.
Como até os 13 anos o contato afetivo, tanto materno quanto paterno, foi ausente na vida de José Lúcio, por conta da separação compulsória, ele afirma que o casamento e a religiosidade foram fundamentais na criação de sua filha Sarah. “Minha esposa me ajudou muito por conta dessa ausência afetiva que eu tive. Como leitor da Bíblia, acredito que a prática me ajudou enquanto pai a oferecer o melhor para a minha filha. E sempre busquei fazer o melhor para que ela seja bem sucedida amorosamente, psicologicamente.” Mesmo com a filha já casada, ele não abre mão de se fazer presente. “Cada dia mais aprendo com ela.”
Qual o significado da paternidade?
Para cada um deles, a paternidade oferece experiências diferentes: no trato, no carinho, na doação. Por isso, “procurar dar o melhor”, é um ponto de encontro entre os quatro. Para quem não teve nada, não basta simplesmente dar, mas oferecer o melhor. “Há muitos órfãos de pais vivos, infelizmente”, comenta José Lúcio. “Fazer o papel de pai é dar o melhor que a minha filha merece”, enfatiza. Com afeto, Cliverton afirma que a paternidade é “sentir um amor fora do comum”. “O amor de ter um filho é muito diferente.”
Para Matheus, a paternidade dobra a responsabilidade, devido ao cuidado com o outro. “O cuidado necessário é constante, para evitar que as coisas ruins aconteçam.” Já João entende o “ser pai” de forma leve, mas responsável: “como pai quero me divertir, cumprir minhas obrigações e que meu filho se lembre de mim por ser um pai extremamente realizado e feliz”, afirma ele, que diz repetir a frase diariamente, quase que como um mantra, colocando à frente a felicidade dele e a do filho, deixando de lado “o que as pessoas vão pensar”.
Sem mágoas
Agora adultos e também pais, obviamente, Cliverton, João Otávio e Matheus revelam que não guardam mágoas dos pais por conta da ausência e que, de alguma forma, a reaproximação aconteceu. Longe de ser algo intenso, mas já é alguma coisa para quem tem a oportunidade de escrever um final diferente para essa relação.
“Meu pai me procurou depois que o Enzo nasceu, ele pediu para visitar o meu filho, aí começamos a ter um contato, mas esporádico, ele mora em outro estado”, conta João. Ou seja, foram 26 anos para a reaproximação entre os dois acontecer. Cliverton, por sua vez, diz que conversa com o pai normalmente, não guarda mágoas e entende o pouco contato. “A jornada de trabalho dele era grande.”
Com a maturidade, conforme conta Matheus, veio o aprendizado de relevar situações vividas no passado. “Por muito tempo, julguei muito meu pai por tudo o que ele fez, mas depois de um tempo, amadureci e passei a relevar muita coisa. Posso dizer que encaro isso de forma mais leve agora. De vez em quando, mando uma mensagem para meu pai só para lembrá-lo de que estou aqui, caso ele precise.”
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