‘Infância despedaçada’: em 2023, RJ teve 1 denúncia de estupro de crianças a cada 2 horas e meia
Em apenas 1 ano, o Rio de Janeiro registrou quase 9 mil vítimas de estupro. Os dados, que são da soma de informações do Instituto de Segurança Pública (ISP) e do Disque 100, indicam que ao menos 1 denúncia de violência sexual foi feita por hora no estado.
Das 8.836 denúncias de abuso sexual registradas no Rio de Janeiro em 2023, 3.540 eram de crianças que tinham até 13 anos. Ou seja, 40% das pessoas que foram abusadas eram crianças. Os dados apontam ainda que o pico de violência sexual contra crianças está entre 11 e 13 anos.
Na semana do Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual contra Crianças e Adolescentes (18 de maio), o g1 preparou uma série de reportagens especiais que contam a história de vítimas, seus medos e superações.
O crime de abuso de vulnerável já é considerado um problema de saúde pública no país, de acordo com a Unicef, e há uma grande relutância da sociedade em admitir e falar abertamente sobre a temática.
Meninas negras e pardas: as principais vítimas
A violência tem um perfil definido, de acordo com dados do RJ — mas que se repetem no país inteiro:
- 86% das crianças eram meninas;
- 67% eram pardas ou negras;
- Pai, mãe, padrasto e madrasta são os principais agressores durante a infância;
- E a maior parte dos abusos acontece dentro de casa.
Subnotificação
Segundo a Unicef, apenas 7 a cada 100 casos chegam à polícia — menos de 10%. A dificuldade em denunciar tem muitas camadas, segundo os especialistas: crianças que não entendem o que aconteceu, vítimas ameaçadas e até a conivência de outros familiares são barreiras.
Com isso, milhares de casos seguem subnotificados, o que aumenta a impunidade – sequer são investigados.
Maio Laranja
O Maio Laranja é a campanha de combate ao abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes e tem o dia 18 de maio como data nacional de mobilização e conscientização.
A campanha nasceu em memória de Araceli Cabrera Sánchez Crespo, que tinha apenas 8 anos quando foi sequestrada, drogada, violentada e morta em Vitória, no Espírito Santo, no dia 18 de maio de 1973.
Quase 20 anos depois, em 1991, os 3 réus foram absolvidos, e o crime segue sem punição até hoje.
Tio condenado por abuso
Infelizmente, são raros os casos em que os abusadores são condenados. Em 2019, Suellen Baltazar foi contra a família e o marido e denunciou à polícia que seu cunhado, irmão do então esposo, tinha abusado da sua filha, à época com 4 anos (assista ao vídeo no início da reportagem).
O resultado só veio depois de 4 anos: Diego Tobias Gonçalves foi condenado a 14 anos de prisão em regime fechado pelo crime de estupro de vulnerável.
Até a publicação desta reportagem, no entanto, ele ainda estava foragido (informações sobre seu paradeiro podem ser dadas ao Disque Denúncia, veja contato no fim da matéria.
Relatos das vítimas, muitas vezes, é a única prova
A peça fundamental para a condenação de Diego foi o próprio relato da vítima, que foi atendida por equipes especializadas do Conselho Tutelar depois que a denúncia foi feita.
A criança, por 3 vezes, repetiu e reproduziu tudo que o tio fez com ela.
“Quando eu descobri, foi um susto muito grande. Eu lembro que só queria saber o que tinha acontecido com a minha filha e até onde ia esse dano”, relembra a mãe.
A cabeleireira percebeu que tinha algo gravemente errado acontecendo quando, em um dia que faria um curso de especialização, chegou horas antes do combinado e flagrou a criança apenas de calcinha no colo do tio, enquanto ele estava somente de samba-canção.
“Foi a primeira vez que eu olhei a situação sem cortinas. Aquilo me deu um baque que parecia que tinha aberto um buraco no meu peito, eu olhei para a minha filha e ela me pediu socorro com os olhos”, conta Suellen.
A importância da denúncia
Usando uma boneca, como se fosse uma brincadeira, a criança mostrou para a psicóloga os movimentos que o tio fazia e como ele agia com ela. Segundo o depoimento, ele sempre fazia “brincadeiras legais, comprava doces e brinquedos” antes de cometer os crimes.
O relato foi usado no julgamento, e o juiz Richard Robert Fairclough entendeu que a fala da criança era suficiente para a condenação, junto com o relatório psicológico e o laudo feito por um ginecologista – que indicava alargamento do hímen.
Pouco antes de ir à polícia, a mãe foi desencorajada pelo marido a denunciar. Ele dizia que “o pai era diabético e a mãe não aguentaria”, segundo ela.
Depois que o médico avaliou a menina, o sogro disse que não valeria a pena ir para o tribunal “já que ele só colocou o dedo”, conforme conta Suellen.
Enquanto isso, a família paterna da vítima alegou, em juízo, que a situação tinha sido inventada por Suellen depois que os pais cobraram que ela desse um benefício em dinheiro para Diego, já que ele levava e buscava a menina na escola.
Diego também usou a mesma narrativa e disse que “estava sendo acusado de um crime odioso por simples vingança”.
O magistrado considerou que o relato da menina era “harmônico e coerente entre si em todas as ocasiões em que foi ouvida”.
Mesmo depois da condenação, Diego não se apresentou às autoridades para cumprir a pena. Em abril, o Ministério Público pediu que as empresas de telefonia quebrassem o sigilo de informações sobre o paradeiro dele, para ajudar a polícia.
Em uma conversa com Suellen, o advogado de Diego sugeriu que ele estava escondido no Complexo da Penha, com um suposto apoio de traficantes da facção criminosa que domina o local.
O g1 entrou em contato com o advogado do acusado, que afirmou que o caso não está encerrado. Por mensagens, a defesa questionou a reportagem ser baseada só no depoimento da mãe, a quem chamou de “desequilibrada” e afirmou que o pai da vítima dará um novo depoimento. Na tarde de domingo (12), a defesa afirmou que enviaria um posicionamento por nota, mas até o fim da noite não havia enviado.
Quase 24 horas depois do primeiro contato, a defesa procurou o g1 para informar que se referia ao escritório do advogado quando disse para a mãe buscar o acusado na Penha, e não referente ao Complexo da Penha, que é dominado por traficantes. No primeiro contato, o advogado não tinha negado a informação de que Diego estaria escondido no local.
Antes de o crime ser descoberto, a família já vinha percebendo que tinha algo errado.
“A minha sogra tinha dito: ‘olha, a Nalu tá estranha, tem que conversar com ela’. Dizendo que ela estava fazendo movimentos em cobertas e tentando se tocar. A pediatra disse que ela estava se descobrindo, que era para conversar e buscar ajuda psicológica. Da segunda vez, minha sogra disse que ela estava com a parte íntima ardendo. A pediatra disse que era infecção urinária. Não tinha passado pela minha cabeça que seria algo tão grave”, desabafa a mãe.
Durante a investigação, Suellen ainda estava casada com o pai da criança, mas acabou se separando. Ela afirma que, mesmo após a condenação, os irmãos ainda têm contato, e o pai da vítima sabe onde o abusador está – e não o entrega para a polícia.
“É absurdo, um crime tão monstruoso e ver um pai conseguir abraçar, ainda que seja irmão, o cara que fez isso com a filha dele, um ser tão inocente.”
Trauma que se torna familiar
Além da violência física, a criança foi manipulada de forma psicológica, para que ela não contasse para outras pessoas – o que é muito comum em crimes assim.
“Ele fazia de uma forma muito inteligente pra ele. Ele falava pra ela que se ela me contasse ou contasse para alguém, eu ia morrer, mas ele nunca falava que seria ele que ia me matar”, diz a mãe.
A menina, por conta do trauma, teve dificuldades na alfabetização, ainda enfrenta problemas escolares e faz terapia. A mãe chegou a perder 20 quilos e também precisa de acompanhamento psicológico.
“Todo mundo que conhece ela, tem a oportunidade de falar com ela, diz que ela é especial. Quando tudo aconteceu, muitas vezes era ela que me acalmava, falava que ia ficar tudo bem, que ela estava bem. Uma vez ela falou para mim: ‘mamãe, não está nem mais doendo’, e aquilo acabou comigo”, desabafa, emocionada.
De acordo com os psicólogos que cuidaram da menina nesses anos, ela tinha idade suficiente para nunca mais esquecer a violência que Diego cometeu contra ela.
Para a mãe, a história só terá um final justo quando ele estiver atrás das grades.
“Quero que minha filha conte a história dela, porque ela vai contar e não vai esquecer. Eu queria que ela falasse para ajudar outras mulheres, mas que tivesse propriedade para falar que teve um início, um meio e um fim. E o fim para a gente é com ele dentro da cadeia, porque hoje quem está presa somos nós”, destaca Suellen.
“Hoje, o que eu quero e vou até o fim é que ele seja preso.”
Ajude a localizar criminosos
O Disque Denúncia pede a ajuda de cidadãos com informações e denúncias sobre a localização de criminosos e foragidos, seja qual for o crime:
- Central de atendimento: (021) – 2253 1177 ou 0300-253-1177
- WhatsApp Anonimizado: (021) – 2253-1177 (técnica de processamento de dados que remove ou modifica informações que possam identificar uma pessoa)
- Aplicativo: Disque Denúncia RJ
Não é preciso se identificar e o anonimato é garantido.
Saiba onde denunciar casos de abuso sexual
- Polícia Militar – 190: quando a criança está correndo risco imediato
- Samu – 192: para pedidos de atendimento médico urgentes
- Delegacias especializadas no atendimento de crianças ou de mulheres ou qualquer delegacia de polícia
- Disque 100: recebe denúncias de violações de direitos humanos. A denúncia é anônima e pode ser feita por qualquer pessoa
- Conselho tutelar: São os conselheiros que vão até a casa denunciada e verificam o caso. Dependendo da situação, já podem chegar com apoio policial e pedir abertura de inquérito.
- Profissionais de saúde: médicos, enfermeiros, psicólogos, entre outros, precisam fazer notificação compulsória em casos de suspeita de violência. Essa notificação é encaminhada aos conselhos tutelares e polícia: disquedenuncia@sedh.gov.br
- WhatsApp do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos: (61) 99656- 5008
- Unidades do Ministério Público
Para saber mais sobre o direitos das crianças, conheça a newsletter Infância na Mídia.