Infância em refúgio: o acolhimento a crianças migrantes no Brasil

Veículo: UOL - SP
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Oceanos navegados em embarcações frágeis e apinhadas de gente, desertos perigosos atravessados, fronteiras cruzadas na clandestinidade. Guerras, fome, climas extremos, doenças, violações de diversos tipos, perseguições e falta de perspectivas. É com essa bagagem de experiências dolorosas que muitas crianças de várias partes do mundo chegam ao Brasil em busca de refúgio, dignidade e futuro.

De acordo com o relatório de 2024 do Observatório das Migrações Internacionais (OBMigra), projeto de pesquisa vinculado ao Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), em 2023, pelo menos 143.033 pessoas estavam refugiadas no país — número que corresponde a um aumento de 117,2% em comparação com 2022. Entre elas, milhares de meninos e meninas que, forçadamente, deixam para trás os amores, a identidade, as roupas, os brinquedos, as canções, os abraços.

E, assim, a infância desses pequenos precisa, na maioria dos casos, ser reconstruída e redescoberta após essa intensa travessia. Mas como é reinventar uma fase tão fundamental para o desenvolvimento humano em um lugar que ainda está aprendendo a acolher? Especialistas ouvidos pela Gama indicam que não é um caminho fácil, mas é possível — com empatia, escuta ativa e suporte adequado.

Língua, literatura e acolhimento

De imediato, um desafio se impõe: a barreira linguística, que impacta os refugiados, porém, em níveis distintos. “Uma criança que vem da República Democrática do Congo [RDC], por exemplo, às vezes fala lingala, às vezes, francês; enquanto uma venezuelana se comunica em espanhol, que é diferente daquela oriunda de um país árabe. O idioma é o primeiro grande impacto para a adaptação”, explica a jornalista e pesquisadora de migrações Fernanda Paraguassu.

Além da língua, Paraguassu lista outros fatores que afetam diretamente a vivência dos indivíduos mais jovens em situação de refúgio no Brasil, como a alimentação, a religião, a cultura e as novas dinâmicas familiares, já que muitos desembarcam por aqui com só um dos responsáveis — geralmente a mãe —, irmãos, avós ou até sozinhos.

Autora do livro infantil “A Menina que Abraça o Vento” (Vooinho, 2017), ela aborda questões como essas na publicação, que acompanha Mersene, uma congolesa que se separou de parte da família, incluindo do pai, para fugir do conflito na RDC. A fim de driblar a saudade de casa, a garotinha inventa uma doce brincadeira.

A trama foi inspirada em histórias reais vividas por congolesas refugiadas no Rio de Janeiro e coletadas por Paraguassu, que observou, entre outras coisas, a capacidade das crianças superarem a dor; como encaram a migração forçada; e de que maneira os coleguinhas reagem e ajudam aquela pessoa estrangeira com um novo idioma e costumes específicos.

A obra, que já é usada em algumas escolas, não apresenta apenas assuntos duros relacionados ao refúgio, mas incentiva a busca por informações, despertando a empatia e a receptividade dos estudantes. Para a escritora, a literatura é uma importante ferramenta de inclusão. “Os livros ajudam a despertar a curiosidade sobre quem está chegando”, diz.

Paraguassu salienta que é necessário trabalhar também com a turma de alunos locais que vão receber o colega de fora. “É essencial para que haja realmente um acolhimento. Ou tudo pode parecer que está bem em sala de aula, mas na hora do recreio o bullying acontece. Bato sempre no ponto: não é só o professor que tem de estar preparado. O trabalho é conjuntural.”

Ela reforça que a falta de informação, além das noções distorcidas sobre o que é desconhecido, seja de qualquer ponta da comunidade escolar ou da sociedade como um todo, é o caminho para o preconceito e para a exclusão.

Escola em refúgio: obstáculos, cultura e confiança

A inserção no sistema educacional básico às vezes se torna um tópico crítico. O Brasil garante, por lei, a matrícula de crianças e adolescentes refugiados, independentemente da documentação — é bastante comum os migrantes chegarem com a roupa do corpo, sem qualquer documento. Porém, na prática, essa matrícula imediata nem sempre acontece por pura falta de conhecimento.

“Há escolas que não matriculam refugiados porque a criança não tem documentos ou histórico escolar, mas isso é um direito garantido”, destaca Fernanda Paraguassu. A pesquisadora comenta que, quando conseguem uma vaga, esses jovens podem ainda enfrentar dificuldades porque a instituição não está preparada para recebê-los, o que, segundo ela, não é culpa de diretores, docentes e coordenadores. “É uma falha do sistema”, frisa.

Mesmo em meio a problemas, várias iniciativas buscam construir uma recepção mais humanizada. Desde 2016, a Emei João Mendonça Falcão, localizada no Brás, bairro de São Paulo historicamente conhecido por abrigar migrantes de inúmeras regiões do planeta, desenvolve o projeto “Culturas do Mundo – A História de Muitas Vozes”, que visa promover e fortalecer o pertencimento dessas crianças ao ambiente escolar. Ali, são atendidos alunos de quatro a seis anos de idade, entre brasileiros e de outras 13 nacionalidades, como haitianos, peruanos, bolivianos, angolanos, marroquinos, nigerianos e sírios.

O programa, que já recebeu alguns prêmios, está dividido em cinco momentos, conforme conta Dione Aparecida Evangelista, professora da Emei paulistana. O primeiro é dedicado ao acolhimento, por meio da música e de atividades lúdicas. “A gente traz cantos e brincadeiras do mundo, pesquisa as culturas das crianças presentes, estuda sobre os países e constrói instrumentos.”

A segunda parte é uma entrevista, como as do Roda Viva, da TV Cultura. Um estudante é convidado a se sentar em um trono para responder às perguntas dos demais. “É para eles se apresentarem, falar dos gostos, do que sentem, do lugar de nascimento, das características culturais”, compartilha Evangelista. Depois, no mesmo formato, é a vez de um familiar ser chamado ao centro. “Esse é um momento gratificante e emocionante porque a família se sente parte da escola e começa a confiar e a valorizar mais esse espaço.”

O quarto passo é voltado ao território, com saídas pelas redondezas. A intenção, fala a professora, é que as crianças novatas se sintam pertencentes ao bairro. “Porque a gente só respeita o que a gente conhece. Em seguida, trabalhamos o direito à cidade, à cultura e ao lazer, visitando equipamentos públicos, andando de metrô, ônibus. É uma grande aventura.”

Por fim, o quinto item tem o objetivo de ampliar o repertório cultural e artístico dos pequenos, pesquisando artistas dos países dos colegas recém-chegados. “É um projeto muito lindo e muito humano”, declara a docente, que garante que tudo é feito no tempo das crianças, respeitando a individualidade de cada uma, inclusive no aprendizado do português.

Deixamos claro que a língua materna é a cultura dela [da criança]. A gente não quer que isso se perca. Se isso se perder, é uma parte dela que vai embora

“O tempo de assimilação de cada um é respeitado. A criança usa muito o corpo para se comunicar, também pedimos ajuda de quem fala o mesmo idioma, como a família, tem ainda aplicativos maravilhosos”, ressalta. “Não é que ela precise se virar para aprender a nossa língua, mas deixamos claro que a língua materna é a cultura dela, faz parte dela. E a gente não quer de jeito nenhum que isso se perca. Porque se isso se perder, é uma parte dela que vai embora.”

Saúde mental da criança refugiada

Outro fator que muitas vezes é invisibilizado é o impacto emocional do deslocamento forçado. A psicóloga Gabriela Azevedo de Aguiar, doutora em psicossociologia de comunidades e ecologia social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) que trabalha com refugiados e imigrantes há anos, evidencia que o trauma da migração pode afetar profundamente a saúde mental dos pequenos.

“Em geral, ninguém pergunta como as crianças estão se sentindo e quais são seus sonhos para além da sobrevivência. As crianças têm voz. Precisamos criar espaços sensíveis para que a gente consiga escutá-las”, afirma.

Como parte da tese de doutorado, Aguiar elaborou um atlas de atividades para a promoção de ambientes interculturais e acolhedores nas escolas, assim como um livro ilustrado, materiais que podem ser úteis para a criação de ambientes mais hospitaleiros aos jovens em situação de refúgio.

As crianças têm voz. Precisamos criar espaços sensíveis para escutá-las

Para isso, entretanto, a psicóloga diz que, além da criação de mecanismos para atividades pensando na criança, é preciso que os educadores tenham um suporte e que o poder público encabece o processo de inclusão e acolhimento. “Senão a gente vai, de novo, deixar nas costas do professor a responsabilidade. Um profissional mais sensível ao tema e que se dá conta de que há uma necessidade de apoio vai tomar para si essa missão, mas sem a infraestrutura fornecida pela escola”, pontua.

Há uma porção de organizações não governamentais (ONGs) que, da mesma forma, desempenham um papel essencial nesse caminho. Iniciativas como a Compassiva apoiam toda a família. A ONG, que fica na baixada do Glicério, zona central de São Paulo, tem foco nos adultos refugiados, com aulas de português, auxílio para a inserção no mercado de trabalho e revalidação de diplomas, mas, paralelamente, oferece ajuda às crianças e aos adolescentes que vivem nas casas de acolhimento da instituição.

“Ajudamos as famílias a matricular os filhos na rede pública de ensino. Nossa assistente social faz todo esse meio de campo. Caso necessário, também fazemos encaminhamentos médicos e psicológicos”, cita Caetano Pinilha, diretor da Compassiva. Além disso, a organização mantém o projeto Dojo, que oferece aulas de jiu-jitsu e grupos de leitura para cerca de 40 crianças, incluindo refugiadas.

Pinilha relata que proporcionar momentos de diversão e integração cultural, com passeios e visitas a museus, também é crucial para a adaptação e a integração. “A gente acredita que o lazer e a cultura são importantes para trazer saúde à família.”

 

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