Intervenção: “Sob fogo cruzado, crianças dificilmente vão aprender”
Rio de Janeiro, 20 de fevereiro de 2018. Durante uma operação militar na Favela Kelson’s, na Penha, zona norte da cidade, militares das Forças de Segurança, armados de fuzis e metralhadoras, revistam as mochilas de crianças com uniformes da rede municipal de ensino. O flagrante da cena ganhou a capa de um jornal de grande circulação e, em pouco tempo, repercutiu nas redes sociais. Qual será o impacto da intervenção federal, anunciada pelo presidente Michel Temer no dia 16 e aprovada pelo Senado no último dia 20, no dia a dia de escolas da rede pública do Rio de Janeiro? É o que a NOVA ESCOLA perguntou a professores, diretores e pais de alunos que vivem e trabalham em áreas dominadas pelo tráfico de drogas.
Para Susana Gutierrez, diretora de uma escola da zona norte, a expectativa é a pior possível. “A intervenção não vai resolver o problema da segurança e ainda vai agravar a crise da educação”, prevê. “Só tem um objetivo: criminalizar a pobreza”. Com 19 anos de magistério, 18 deles em comunidades carentes do Rio, ela afirma que “violência não se combate com violência”. “Violência se combate com a construção de novas escolas, a contratação de mais professores e investimentos do governo na área da educação”, diz.
Morador do Complexo da Maré, que reúne 17 comunidades, como Timbau, Vila do João e Nova Holanda, Edson Diniz, 47 anos, acredita que a intervenção “não dá em nada”. Ele lembra que a Maré foi ocupada por 2,5 mil soldados das Forças Armadas durante 14 meses, de abril de 2014 a junho de 2015. “Por experiência própria, podemos dizer que esse tipo de intervenção não dá em nada. É mais uma jogada política que qualquer outra coisa”, garante. Edson tem quatro sobrinhos, de sete a 15 anos, na rede pública. Só na Maré, funcionam 44 unidades, de ensino fundamental e médio. Segundo ele, as crianças estão com medo. “Quando tem operação na favela, as aulas são suspensas e elas ficam sem estudar”, diz.
Medo expresso em desenhos e histórias
Professora de História de uma escola da zona oeste, Dorotea Frota Santana não está nada otimista – e se diz temerosa pela segurança dos estudantes. “Já tive alunos que foram abordados de maneira grosseira e arbitrária”, denuncia. Quanto à cena que causou comoção nas redes sociais – a do soldado inspecionando mochilas escolares –, afirma que, para quem vive em área de risco, virou rotina. “Os militares não têm preparo: não sabem abordar, nem dialogar”, afirma.
Há um entendimento que abordar e revistar alunos teria consequências muito maiores se não ocorresse nas comunidades do Rio. “Imagina se os militares resolvessem revistar as mochilas das crianças do Santo Inácio?”, indaga Edson Diniz, referindo-se a um colégio particular na zona sul da cidade. “Seria um escândalo, capaz de derrubar qualquer governador. Na favela, porém, não acontece nada”.
Dorotea explica que muitos de seus alunos, principalmente os do ensino fundamental, ainda não sabem verbalizar o que estão sentindo. Em vez de se expressarem em palavras, dão seu recado através de histórias e desenhos. “Você logo percebe que uma criança não está legal quando ela faz desenhos sem cor ou escreve letras minúsculas”, analisa a professora.
A convivência com o medo se manifesta também de forma muito mais direta. “Quando estamos em sala de aula e, lá fora, se ouve barulho de tiro, as crianças começam a chorar. Como dar aula numa situação dessas? Abala o emocional de qualquer um”, questiona Dorotea. Susana Gutierrez, professora que dá aula de Artes, faz coro: “Sob fogo cruzado, crianças dificilmente aprendem alguma coisa. A maioria tem dificuldade de aprendizagem e problema de concentração”.
Como agir em caso de tiroteio
A exemplo de Dorotea, Alcidésio Júnior também já procurou conversar com seus alunos sobre o impacto da intervenção na rotina escolar. Segundo o professor de História, alguns estudantes estão esperançosos, outros apreensivos, mas a maioria ainda não sabe o que vai acontecer. Por via das dúvidas, a unidade onde Alcidésio dá aula, a Escola Municipal Daniel Piza, em Acari, criou alguns protocolos de segurança para os dias de confronto. Foi lá que, no dia 30 de março de 2017, a estudante Maria Eduarda Alves da Conceição, de 13 anos, morreu após ser atingida por disparos de fuzil. “Evitar lugares vulneráveis, como portas e janelas, é um dos protocolos de segurança. Procurar o lugar mais seguro da escola e deitar os alunos no chão é outro”, cita alguns procedimentos.
O clima de incerteza levou professores a prestar atenção em alguns “detalhes”, antes de entrar na comunidade onde trabalham. Um deles é o ponto de mototáxi, que funciona a poucos metros da unidade. O outro é o comércio local. “Se os mototaxistas não estiverem trabalhando e os comerciantes não abriram suas lojas, é porque algo de errado aconteceu”, explica Alcidésio.
No mesmo dia em que o presidente Michel Temer anunciou a intervenção federal na segurança pública do Rio, o Sindicato Estadual dos Profissionais da Educação do RJ (SEPE-RJ) soltou uma nota, criticando a decisão. "As comunidades escolares, que não têm culpa ou responsabilidade com o aumento da violência, mais uma vez ficarão expostas com o avanço das forças de segurança. E profissionais de educação e alunos correrão ainda mais riscos de entrarem para os mapas que medem os índices de violência em nosso estado", diz o comunicado. “Mais do que de armamentos, precisamos de inteligência. Mais do que de pirotecnia, de investigação. Caso contrário, tudo vai voltar ao que era antes”, alerta Marta de Moraes, diretora do sindicato.
Procurada pela reportagem da NOVA ESCOLA, a Secretaria Municipal de Educação informou, através de sua assessoria de imprensa, que não iria se pronunciar sobre a intervenção federal na segurança pública do Estado do Rio de Janeiro. Na primeira reunião do Observatório Legislativo da Intervenção Federal na Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro (Olerj), o tema foi exatamente a educação. Os gestores discutiram questões como evasão escolar, valorização dos professores, tempo integral e formas de tornar a escola mais atrativa para os estudantes, sem tratar diretamente da relação entre a intervenção e a educação.