Justiça Restaurativa abre caminhos para a resolução de atos infracionais

Veículo: Diário do Nordeste - CE
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Imagine ficar frente a frente com alguém que o agrediu ou furtou, por exemplo, para que vocês discutam os motivos que o levaram a cometer o crime. Esse é um dos exemplos orientados pela Justiça Restaurativa, metodologia que consiste na mediação entre a vítima e o autor da infração, colocando-os no mesmo ambiente, com segurança física e jurídica, na busca por um acordo que não envolva apenas a punição. Em prática há mais de uma década no Brasil, a abordagem só foi efetivamente incorporada ao sistema de Justiça no ano passado, através de resolução do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

Centro será pioneiro na mediação de casos

Em Fortaleza, a prática já recebe apoio do Instituto Terre des hommes (Tdh), que promove ações diretas com o público infantojuvenil na condução de procedimentos restaurativos, mediação de conflitos e círculos de diálogos e construção de paz em escolas estaduais do Grande Mucuripe e do Grande Bom Jardim, compreendendo 12 bairros e quatro comunidades. A entidade também é parceira do Tribunal de Justiça e da Defensoria Pública do Estado do Ceará na disseminação da abordagem.

Para o chefe da delegação da Tdh no Brasil, Renato Pedrosa, a proposta representa uma mudança de paradigma na resolução de conflitos, ao se basear na reparação de danos das vítimas e na responsabilização do infrator. “É uma forma de Justiça que trabalha para que o adolescente que comete ato infracional não seja só privado de liberdade, mas leva a uma reflexão do impacto daquele ato para a vítima, para as famílias, para ele e para a comunidade”, explica.

Embora, nesse primeiro momento, a Justiça Restaurativa no Ceará tenha foco nos adolescentes em conflito com a lei, ela pode ser ampliada para resolver casos de violência doméstica, maus tratos e até homicídios, como ocorre em outros estados. Contudo, como Renato defende, é preciso trabalhá-la aos poucos, por se tratar de um projeto “inovador”. “Como vou me encontrar com o agressor? Tem toda uma formação anterior. Não é de imediato. Se a vítima não quiser participar, ela pode receber o resultado da discussão com o facilitador”, diz.

A previsão é que os primeiros atendimentos no Judiciário cearense sejam realizados ainda em 2017, mas a Tdh já trabalha com articulacoes comunitárias; afinal, na Justiça Restaurativa, o conceito de comunidade é ampliado para escolas, associações de bairro, igrejas e até a Polícia. No ano passado, 10 ações de prevenção e enfrentamento da violência contra crianças e adolescentes foram realizadas em Fortaleza, desde caminhadas à capacitação de mediadores.

Educação

Com suporte da Tdh, a Secretaria de Educação do Estado (Seduc) criou a Célula de Mediação Social e Cultura de Paz, para prevenir a violência dentro do espaço escolar. O objetivo da Célula é implantar salas de mediação de conflitos em toda a rede estadual de ensino; por enquanto, três já foram instaladas. Também já ocorrem formações com técnicos das Coordenadorias Regionais para a apropriação da metodologia a ser implementada nas escolas.

Segundo a Tdh, 3.700 alunos já foram beneficiados, direta ou indiretamente, pela execução do Modelo de Ação de Proteção e Práticas Restaurativas. A Seduc afirma que “a vivência desse processo implica uma mudança de paradigma no modus de gestão dos conflitos no ambiente escolar”, o que, em 2016, possibilitou a redução da violência em 65% dos encaminhamentos relacionados a conflitos na Escola Matias Beck; 32,3% na Escola Osíres Pontes, e 17,6% na Escola Murilo Borges.

Betânia Gomes, coordenadora da Célula da Seduc, destaca que a implementação da metodologia envolve algumas etapas até as pessoas envolvidas estarem preparadas para proceder às práticas de mediação e círculos de construção de paz. “Primeiramente há a sensibilização inicial junto à comunidade escolar; em seguida, é feita a análise situacional da escola em relação aos casos de conflitos e violências; depois é construído o Plano de Ação e, em seguida, começam as formações com professores, alunos e núcleo gestor”, diz.

Após as formações, os grupos começam a vivenciar a prática, tanto dos círculos de construção de paz, quanto dos casos que requerem a mediação. Na escola Matias Beck, no bairro Vicente Pinzón, as reuniões dão oportunidade para resolver conflitos e desavenças. “Eu mesma já pedi uma mediação. Hoje, a pessoas e eu não temos amizade, mas respeitamos o espaço uma da outra. Resolvemos sem violência, mas com conversa”, orgulha-se a estudante Rayane Teixeira, 14.

Segundo a diretora da unidade, Virgínia Vilagran, o clima melhorou na escola desde a implantação do modelo, em 2016, e de forma muito rápida. “A nossa proposta é implantar uma cultura de paz. É uma mudança de atitude não só dos alunos, mas dos funcionários também. Passamos a ser agentes multiplicadores e mudamos nossa perspectiva ao lidarmos com conflitos no dia a dia”, afirma.

Judiciário

A Justiça Restaurativa, porém, não substitui a Justiça tradicional, “até porque seria impossível com a legislação atual”, como comenta o delegado da Terre des hommes. Na realidade, elas podem operar de forma complementar. Por isso, houve um processo de sensibilização do sistema Judiciário cearense até que, em fevereiro deste ano, foi implementado o Núcleo de Justiça Restaurativa no âmbito das Varas da Infância e Juventude, seguindo normas estabelecidas pelas Resoluções nº 1/2017 do Tribunal de Justiça do Ceará (TJCE), e nº 225/2016 do CNJ.

Conforme Pedrosa, no Judiciário, os encontros são voluntários e implicam no consentimento tanto da vítima quanto do agressor. Pré-círculos de conversa são desenvolvidos por facilitadores até a fase do encontro afetivo, quando ocorrem as discussões para uma proposta de acordo, que pode ser homologada pelo juiz responsábel pelo caso. Por fim, ocorre o monitoramento da aplicação das decisões acordadas entre as partes, num período de 30 a 90 dias.

“O modelo restaurativo busca essa reflexão pormenorizada e, em conjunto, busca conduzir as pessoas à responsabilidade, ao respeito ao próximo e à paz”, ressalta Isabela Barbosa, diretora de Secretaria da 4ª Vara da Infância e Juventude. Segundo ela, o modelo se contrapõe à Justiça Retributiva, que tem foco na punição, e à Justiça Distributiva, com foco na reeducação, e se orienta pelos princípios da corresponsabilidade, da reparação de danos e do atendimento às necessidades dos envolvidos.

De acordo com Isabela Barbosa, caberá ao TJCE, através da Escola de Magistratura do Ceará (Esmec), promover cursos de capacitação, treinamento e aperfeiçoamento de facilitadores em Justiça Restaurativa. Para ampliar o conhecimento da abordagem no Estado, no início de maio, a metodologia foi tema de um curso com magistrados, promotores, defensores e advogados da região do Crato.