Listado entre as piores formas de trabalho infantil, tráfico de drogas é interpretado de forma ambígua pela justiça brasileira
Considerado uma das piores formas de trabalho infantil pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), conforme a Lista TIP – sigla que identifica a Lista das Piores Formas de Trabalho Infantil, instituída pelo decreto Nº 6.481/2008 -, o envolvimento de crianças e adolescentes com a comercialização de substâncias ilícitas consiste em uma grave violação de direitos, cujas consequências são acentuadas no Brasil pela interpretação ambígua do sistema de justiça do País.
Neste contexto, ao invés de serem percebidos como trabalhadores infantis expostos a todas as violências que essa situação implica, são considerados exclusivamente autores de ato infracional. E ainda que o Brasil seja signatário de compromissos internacionais para reconhecimento, erradicação e combate de mais esta forma de trabalho infantil, impera a perspectiva infracional e punitiva.
Como em muitas outras formas de trabalho infantil, o envolvimento com a produção e o comércio de substâncias ilícitas coloca crianças e adolescentes em situações mental, física, social e moralmente prejudiciais. Impacta na frequência escolar – e estimula a evasão, consistindo em um ofício exaustivo, que os expõe ao contato com substâncias que oferecem grave risco à saúde.
Este delicado assunto foi alvo de mais uma conversa dentro da Campanha Infância Plena, conduzida pela jornalista e socióloga Lia Rizzo, com participação da procuradora Luciana Coutinho, do Ministério Público do Trabalho de Minas Gerais, e de Cris Guterres, jornalista, apresentadora e escritora.
Ambiguidade de interpretação descarta direitos
“A Convenção Internacional 182, ratificada pelo Brasil há 22 anos, arrolou o tráfico como uma das piores formas de trabalho infantil dada a situação degradante e aviltante de exploração da mão de obra dessas crianças e adolescentes”, explicou Luciana Coutinho. Porém, mesmo com a Convenção da OIT, ainda há resistência no reconhecimento das vítimas como tal e a justiça brasileira não considera como trabalho infantil a atuação de crianças e adolescentes no tráfico de drogas.
A ambiguidade jurídico-normativa em torno do tema se dá porque basicamente se aplica apenas o disposto no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), como explicou Luciana Coutinho: “e assim o envolvimento do adolescente com o tráfico é considerado ato infracional, sujeitando à aplicação das medidas socioeducativas, prevalecendo, assim, essencialmente o aspecto punitivo com aplicação de penalidades que vão desde a advertência até a restrição de liberdade. Esta concepção é restritiva e descarta a caracterização do adolescente como vítima, carente da proteção dos seus direitos fundamentais”.
Racismo e vulnerabilidade são determinantes
São muitas as razões que levam crianças e adolescentes para o tráfico. A principal delas, porém, é encontrar neste um meio de sobrevivência, uma possibilidade de remuneração mais elevada do que alcançariam em outras atividades laborais, a exemplo da aprendizagem profissional. Mais uma vez, a desigualdade e a vulnerabilidade socioeconômica são determinantes para o envolvimento em mais essa forma de trabalho infantil. Pesam também as consequências do racismo estrutural, como pontuou Cris Guterres.
A apresentadora lembrou que, atualmente, mais de 70% dos jovens que cumprem medida socioeducativa na Fundação Casa/SP são identificados como negros. “O tom da pele é decisivo. No movimento negro, falamos há muitos anos sobre a maneira como a abolição aconteceu em nosso país e perpetuou em cima desta população uma pesada opressão que a impede de avançar, que a coloca à margem da sociedade. E são esses meninos, marginalizados, que estão ali prontos para serem aliciados na atividade de comércio de substâncias ilícitas”, refletiu Cris, que ressaltou ainda que falamos de crianças que começam a ser assediadas por facções criminosas aos 10, 11 anos de idade.
A pesquisa Panorama das Reentradas no Sistema Socioeducativo, realizada em 2020 pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), apontou que o tráfico de drogas é a segunda maior causa de internação de adolescentes (24%), atrás somente de apreensões por roubo (36%). O estudo mostrou ainda que nesta atividade, crianças chegam a ser exploradas em jornadas de até 12 horas e enfrentam, além dos riscos já supracitados, a exposição a confrontos armados, o que não apenas compromete, como muitas vezes abrevia o futuro desses adolescentes.
É possível denunciar. Saiba onde!
O enfrentamento ao trabalho infantil pelo Ministério Público do Trabalho acontece em várias frentes e a comunidade também pode e deve participar dessas ações, levando ao conhecimento do MPT denúncias – preferencialmente acompanhada de provas, quando possível – pelos canais oficiais do Ministério (www.mpt.mp.br e Aplicativo MPT Pardal), pelo Disque100 ou presencialmente em uma de suas unidades.
A campanha Infância Plena, iniciativa do Ministério Público do Trabalho para combate e erradicação do trabalho infantil, terá duração de doze meses. Ao longo deste período, Vogue realiza mensalmente conversas com especialistas e autoridades sobre as questões mais críticas em relação ao tema e quais outros atores sociais precisam estar envolvidos no combate ao Trabalho Infantil. Também serão veiculados conteúdos informativos em todos os títulos da Editora Globo Condé Nast e no jornal O Globo.
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