Maioria das crianças e jovens vulneráveis não está apta para adoção
O Rio Grande do Sul tem quase 4 mil crianças e adolescentes vivendo em abrigos ou com famílias acolhedoras. No entanto, apenas 14% dessas crianças e jovens estão disponíveis para adoção. Os dados são do Serviço Nacional de Acolhimento e se referem ao mês de outubro deste ano.
Um exemplo dessa realidade é o Lar Esperança, localizado na Zona Norte de Porto Alegre, que abriga 15 crianças, mas apenas três delas estão na fila de adoção. Uma dessas crianças que havia chegado há cerca de um mês é um menino que chamaremos de Bruno*.
Um garoto inteligente, afetuoso, que ganhou o coração da equipe. Mas pode ser mesmo que Bruno esteja de passagem, como também são chamadas essas casas. A equipe do Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas) faz o acompanhamento do menino com a família biológica, pois o objetivo é que essa relação possa ser reconstruída.
A opinião não é compartilhada pela assistente social do Lar Esperança, Patrícia Camargo, tampouco pela psicóloga Karen Rhoden. Elas argumentam que, após acompanhar diversas vezes a família da criança, não acreditam que ela consiga superar suas fragilidades. O processo está em curso desde os primeiros meses de vida do menino. Apesar de discordarem da opinião do Creas, as profissionais do Lar respeitam a argumentação deles.
“Durante o processo de adoção é preciso passar pela destituição do poder familiar, só que anterior a isso, no primeiro momento a gente pensa assim, ‘nossa, tem que fazer esse movimento de distribuição logo para que as crianças tenham a oportunidade de uma nova família’, mas, no entanto, tem uma outra questão humana que a gente precisa levar em consideração que é o afeto que as crianças têm pela família biológica e o desejo de retornar para esse âmbito familiar”, explica a psicóloga.
Ela reconhece que é uma questão polêmica, pois ao mesmo tempo em que junto com os profissionais do abrigo busca ser ágil para facilitar a adoção das crianças, é necessário também reconhecer os afetos e o amor incondicional – apesar das dificuldades enfrentadas – que elas ainda nutrem por suas famílias biológicas.
As famílias biológicas buscam ajuda através do Centro de Referência de Assistência Social (Cras) e do Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas) para superar suas vulnerabilidades. Karen destacou que há muitos casos de sucesso com as crianças voltando para a sua família biológica e que esse é um passo importante que muitas vezes antecede o processo de destituição do poder familiar.
O desafio da reaproximação
No caso da adolescente que chamaremos de Júlia*, foram anos de tentativa da mãe para trazê-la de volta para a casa, mas tanto os profissionais de psicologia e assistência social do abrigo quanto os do judiciário concluiriam que isso não era mais possível. O motivo é a saúde mental da mãe, que expôs a filha a um abuso sexual cometido por um familiar. O processo durou quase quatro anos. Nesse período, Júlia seguiu no abrigo. A adolescente ainda deseja se reaproximar da mãe. Cabe aos profissionais do Lar Esperança explicar que a fragilidade da mãe a impede de retomar essa convivência. Inicialmente o judiciário não queria permitir o encontro das duas, mas os profissionais do abrigo conseguiram, em uma audiência, promover a despedida entre elas.
A juíza da Vara da Infância e da Juventude, de Porto Alegre, Carmen Carolina Veiga Cabral ressalta a importância de ter um cuidado com essas crianças que passaram por situações difíceis.
“A gente tem que respeitar o tempo dessas crianças, que vêm de uma violação de direitos muito grande. Imagina como fica uma criança ou adolescente abusado sexualmente”, questiona.
Júlia agora está destituída. Karen explica que ela chegou ao acolhimento com 12 anos, uma idade já difícil para o processo de adoção. Agora, ela está com 15. A psicóloga reforça que nenhum caso é igual a outro e que é preciso levar em consideração o processo de cada família para chegar a uma solução justa para a criança e seus familiares.
Burocracia reduz chances e retarda adoção
Para a advogada especializada em Direito Homoafetivo, Famílias e Sucessões, Maria Berenice Dias, a burocracia para adotar é perversa, devido ao fato de existirem milhares de crianças literalmente depositadas em abrigos durante muitos anos. Além disso, há uma busca incansável e equivocada de manter as crianças com a sua família biológica ou com algum parente.
“Enfim, demora anos. Enquanto isso, as crianças vão crescendo e a partir dos 12 anos é difícil uma criança ser adotada. Então, nós precisamos é mudar essa dinâmica”, propõe a Berenice, que é vice-presidente Nacional do Instituo Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM).
Mas para a psicóloga do abrigo, Karen Rhoden, a volta para a família biológica se dá quando ela consegue superar suas vulnerabilidades, que podem ser questões financeiras, violência física ou sexual. Ela acrescenta que a volta ao lar de origem é mais comum do que a destituição. “Destituir é a última instância, quando há uma fragilidade que não consegue ser superada”.
O nome Lar Esperança parece ser adequado ao espaço que visitamos. Um local distante da ideia de perda de direitos básicos, hostil e sem vida, como parecer ser o estereótipo de muitos abrigos infantis. O espaço é grande, lúdico e repleto de natureza. No local, além do abrigo para crianças em situação de destituição familiar e aptas para adoção, há também atividades para crianças realizarem no turno inverso da escola e uma escola de educação infantil.
Famílias podem levar anos até conseguir a guarda definitiva
A bancária Lúcia Tuchtenhagen, 60 anos, e o funcionário público estadual, Marcio Mendonça da Silva, 59, moradores de Porto Alegre, resolveram adotar a filha, Veri, quando ela tinha quatro anos e cinco meses, idade em que a criança já foi morar com o casal. Entretanto, o processo de adoção foi concluído quando ela já tinha 9 anos e 10 meses. Hoje, Veri tem 10 anos e seis meses.
“Recebemos a guarda para fins de adoção em agosto de 2018, mas a conclusão da adoção ocorreu em dezembro de 2023, porque nossa filha não tinha a destituição finalizada”, explica Lúcia.
Lúcia destaca que os principais desafios enfrentados durante o processo da adoção foram a desorganização da instituição onde a sua filha estava abrigada e a ineficiência da equipe do judiciário.
“Fomos quase todos os dias ao abrigo, porque a partir do momento que conhecemos ela, já era nossa filha. Não queríamos ficar sem saber como ela estava. Após várias idas e vindas, durante o expediente de trabalho e atravessando a cidade, tendo muito desencontros, fomos questionados sobre o nosso real interesse em adotar, o que não nos deixou muito abalados. Nesse meio tempo, a juíza que estava com o nosso caso pediu afastamento e atrasou um pouco mais a vinda da nossa filha para casa”, relata a mãe adotiva.
O processo de adoção no Brasil é regido pela Lei nº 13.509/2017 e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que busca sempre garantir o melhor interesse da criança ou adolescente que está sendo adotado.
Lucimar Quadros da Silva, de 59 anos, bancário e morador de Gravataí, casado com Rafael da Silva Gerhardt, de 49 anos, dono de um salão de beleza, também passou por um processo de adoção.
A decisão de adotar surgiu a partir do desejo de aumentar a família e da aproximação com casas de passagem através de doações. João Vitor foi adotado quando tinha três meses e 20 dias. Hoje tem 14 anos. A espera pela adoção foi de três anos e meio, isso somado a mais meio ano de espera da habilitação, ou seja, foram quatro anos até conseguir a adoção legal.
Como não excluir por questões de saúde
“O João Vitor não chegou a ficar muito tempo em um abrigo, porque ele foi entregue no fórum pela mãe e avó biológicas com três meses e como estava com bronquiolite, foi internado. Acreditamos que ele ficou apenas 20 dias na casa de passagem e depois veio para nós. No caso do João, como ele foi entregue para adoção pela mãe, o processo de destituição familiar já foi assinado no fórum e depois só teve mais uma audiência, que era a chance para recorrer, mas ninguém apareceu. Contudo, nós participamos de tudo certinho e estávamos presentes”, relata Lucimar.
Rafael destaca que, apesar da espera de três anos para a adoção, ele e seu parceiro não consideram esse período tão longo, quando comparado a outros casos de adoção. O casal optou por preencher o formulário de interesse com critérios flexíveis, solicitando apenas uma criança com até cinco anos e sem doenças incuráveis. Ele observa que, dependendo das preferências expressas no formulário pelos pretendentes, como idade, condições de saúde ou outras especificidades, o tempo de espera pode passar de três anos.
“Se o pretendente colocar que não quer uma criança com doenças nem tratáveis, tira a possibilidade de crianças que não estiverem 100% saudáveis na fila. Como o João, na época, estava com bronquiolite, foi tratado e melhorou. Caso a gente tivesse preenchido isso, ele não teria vindo para nós. Inclusive, se a criança tiver com otite, ela não vai estar saudável e não vai ser indicada, caso o pretendente não queira crianças com problemas tratáveis. Por isso, é preciso ter o cuidado de não colocar que só aceita crianças saudáveis”, informa Rafael.
Para Lucimar, mesmo com motivações legais, nem sempre as famílias aceitam a perda da guarda do menor por interesse nos benefícios sociais concedidos a elas.
“Já vimos casos em grupos de adoção que o parente que aceita cuidar da criança não faz por vontade genuína, mas pelo auxílio financeiro ou benefícios, como cestas básicas, e essas crianças retornam à casa de passagem com ferimentos e traumas”, revela.
Recorte da adoção no estado
De acordo com os dados do Painel de controle de adoção no BR realizado pelo Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento em parceria com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que é atualizado diariamente, no RS há cerca de 3.822 crianças e adolescentes que estão acolhidos em casas de passagem ou por famílias acolhedoras. Desses, apenas 567 estão disponíveis para adoção, o que é um número muito abaixo para o contingente de pretendes aptos a adotar, que são 3.562.
*Nomes fictícios adotados para preservar a identidade das crianças.
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