Mais de 5 milhões de crianças de 0 a 3 anos precisam de creche no Brasil, aponta levantamento

Veículo: Globo.com - BR
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Quase metade de todas as crianças de 0 a 3 anos no Brasil tem necessidade de uma vaga em creche, segundo o novo Índice de Necessidade de Creche (INC), um indicador criado pela Fundação Maria Cecília Souto Vidigal e divulgado pela primeira vez nesta terça-feira (25).

De 11.767.885 crianças nessa faixa etária no país, de acordo com as estimativas para 2018 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 5.414.989, ou 46% do total, precisam da creche, seja porque as famílias são pobres, porque são chefiadas por apenas uma pessoa adulta, ou porque suas mães ou principais pessoas cuidadoras trabalham, são economicamente ativas.

O estado brasileiro com o maior índice de necessidade de creche é São Paulo, onde 53,7% das crianças estão nessa situação.

O indicador, segundo a fundação, foi desenhado não para medir quantas crianças de fato estão ou não matriculadas na creche, mas para dar aos prefeitos subsídios para entenderem as características de sua população local e conseguir desenhar políticas que atendam as pessoas que mais precisam.

“Hoje, o que os municípios normalmente trabalham é o que a gente chama de demanda manifesta”, explicou Heloísa Oliveira, diretora de Relações Internacionais da Fundação Maria Cecília Souto Vidigal. Segundo ela, essa demanda é espera pela chamada “fila da creche” mantida pelas prefeituras. “A família foi até a escola e manifestou interesse, está na fila de espera.”

Mas Oliveira ressalta que muitas famílias, especialmente as mais vulneráveis, desconhecem esse direito, e não chegam a procurar uma escola para solicitar a inclusão na fila. “Fizemos o estudo para estimar a demanda real, que é maior que a demanda manifesta”, afirmou ela.

A especialista lembra que matricular crianças dessa faixa etária na creche não é uma obrigação para os pais, mas sim um direito, e que é dever do poder público garantir a vaga de quem optar pela matrícula.

Como é calculado o Índice de Necessidade de Creche

Para chegar à parcela das crianças de famílias que precisam de uma creche, o indicador usa três grupos demográficos como prioritários:

  • Crianças de todas as famílias consideradas pobres, ou seja, com renda de até R$ 140 per capita, segundo o critério do programa Brasil sem Miséria (2011). A renda foi reajustada seguindo o Índice Nacional de Preços do Consumidor (INPC);
  • Crianças não pobres de famílias monoparentais (pais ou mães "solo"), ou seja, onde o domicílio conta apenas com uma pessoa com 18 anos ou mais;
  • Crianças não pobres de famílias onde a mãe ou a principal pessoa cuidadora é economicamente ativa, ou teria potencial para ser economicamente ativa, caso houvesse vaga na creche para os filhos.

Pela metodologia, a primeira parcela também pode incluir tanto famílias monoparentais ou nas quais a mãe trabalha. A diferença das outras duas parcelas é que, no primeiro caso, só são encaixadas as famílias consideradas pobres.

Para estimar o tamanho que corresponde a cada uma das categorias, além do critério de renda per capita e dados do IBGE sobre famílias monoparentais, o índice também tenta ir além das estatísticas oficiais e estimar a demanda em potencial de mães que trabalham. Veja como foi feita a estimativa:

  • Primeiro, os pesquisadores analisaram como está distribuída a taxa de atendimento de creche pela faixa de renda das famílias;
  • A análise mostra que, quanto mais rica é a família, maior é a porcentagem de crianças frequentando a creche. Esse número chega a 52,1%;
  • Como nessa faixa de renda a falta de recursos não é tida como um obstáculo para conseguir matricular os filhos na creche, já que, se não houver vaga na rede pública, os pais pagar por uma na rede privada, os pesquisadores consideram que pouco mais da metade das famílias tem necessidade de mandar seus filhos para a creche. Os demais optam por não fazer isso;
  • A partir desse cálculo, o número representativo da “necessidade das famílias ricas” foi aplicado a toda a categoria de crianças que se encaixam no terceiro quesito: as filhas de mães economicamente ativas e de famílias não pobres e não monoparentais.

Mães sem trabalho por falta de creche

Mas a terceira categoria inclui ainda uma parcela que não costuma ser considerada em outras análises até agora: a das “mães que seriam economicamente ativas se houvesse creche disponível”.

O estudo chegou a esse grupo levando em conta a proporção de crianças em idade pré-escolas (de 4 a 6 anos) que moram em famílias não pobres e não monoparentais, mas têm mães que trabalham.

Os pesquisadores notaram que essa proporção é mais alta do que entre as crianças menores. “A diferença entre as duas proporções indica que a falta de creches está tirando estas mães do mercado de trabalho. Se as duas proporções fossem iguais, seria possível supor que não existe problema de oferta de creche para este grupo”, diz o estudo.

De acordo com Karina Fasson, analista de conhecimento aplicado da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, o número de mães “potencialmente” economicamente ativas no recorte da pesquisa é mais baixo do que o das mães que já trabalham. Mas as especialistas ressaltam que parte dessa população impossibilitada de trabalhar pela falta de creche também existe dentro da categoria de famílias pobres.

Características variam por município

Os dados analisados pelo INC indicam que o peso de cada uma das categorias pode ser maior ou menor de acordo com a característica do município. No caso tanto do estado de São Paulo quanto da capital, que é a terceira com maior INC, o índice é puxado para cima justamente por serem locais com maior número de mães economicamente ativas.

Veja as cinco capitais com INC mais alto:

  1. Salvador (63,3%)
  2. Maceió (59%)
  3. São Paulo (58,3%)
  4. Recife (57,0%)
  5. Manaus (56,9%)

As características de São Paulo são comuns também nos demais estados do Sul e do Sudeste. Já no Norte e no Nordeste, por exemplo, é a pobreza que acaba puxando o Índice de Necessidade de Creche para cima.

“O índice pode variar não apenas pelo nascimento, como pelas características da população”, afirma Heloisa. “Um empobrecimento maior pode aumentar o índice”, ressaltou ela, citando o impacto econômico da pandemia do novo coronavírus como um fator que pode aumentar a demanda sobre a rede pública de creches.

Impacto da pandemia na demanda

Apesar de ainda ser cedo para quantificar esse efeito, especialistas afirmam que o fechamento das escolas e a incerteza sobre o futuro devem pressionar ainda mais as prefeituras para conseguirem atender à fila de creche existente desde antes da quarentena, ao possível aumento dessa fila e à meta 1 do Plano Nacional de Educação (PNE), que estipula que, até 2024, pelo menos 50% das crianças de 0 a 3 anos estejam matriculadas na creche.

Em 2018, essa taxa era de 38,9% para todo o Brasil, mas com acesso desigual de município para município. Para que a meta seja cumprida, será preciso ampliar a oferta para absorver 1,9 milhão de crianças, estima o estudo.

Segundo José Marcelino de Rezende Pinto, professor da Universidade de São Paulo (USP) em Ribeirão Preto e especialista em financiamento da educação infantil, o desafio para dar conta das obrigações pré-existentes, e agora a pandemia, tem deixado os municípios no limite. “Municípios estão num certo limite, do ponto de vista. Os mais ricos dependem do ICMS, que caiu, e os mais pobres dependem do Fundo de Participação dos Municípios (FPM), que também caiu.”

De acordo com ele, uma das saídas encontradas por prefeitos para expandir as vagas em creche economizando dinheiro é optar pelos convênios com instituições particulares, onde não há piso salarial obrigatório para os funcionários nem garantir de tempo dedicado ao planejamento das aulas. “Sai mais barato porque vai ter pior qualidade”, resume ele.

Para evitar a precarização da educação infantil e a priorização das crianças que mais necessitam, tanto Rezende quanto Heloisa Oliveira defendem que o projeto do Novo Fundeb, que deve ser votado nesta semana no Senado, mantenha os mesmos critérios aprovados no Congresso, que incluem uma priorização de repasses para a educação infantil.