Mais de 70% das vítimas de crimes sexuais no Ceará em 2022 são crianças e adolescentes

Veículo: Diário do Nordeste - CE
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Os homens entravam e saíam, a todo instante, da casa de Ester*, no Serviluz, periferia de Fortaleza. Aos 12 anos, foi exposta a abusos e obrigada a se deitar, com quem a mãe decidisse, por alguns trocados. A escuridão do local escondia, por ora, a cara de sofrimento da adolescente. Após aquela primeira violência sexual, torceu para que nenhum outro abusador chegasse no restante do dia.

Ester, aos poucos, foi sendo convencida pela mãe a permanecer no que ela chamava de ‘trabalho’. Conheceu as drogas também. As palmas das mãos e os dedos já não eram mais os mesmos após o uso de crack. O corpo franzino ficou ainda mais magro. Já não se reconhecia mais no espelho. Suportou por cinco anos.

Com 17, fugiu. Recorreu à avó, que morava em Mondubim, noutro extremo da Capital, porque não aguentava mais a vida que levava. Pediu socorro: ‘não aguento mais’.

Orientada por uma vizinha, a avó foi até uma delegacia registrar um boletim de ocorrência. Após o registro, um inquérito policial foi instaurado e iniciada a investigação. Com provas levantadas, a vítima foi acolhida e encaminhada para uma rede de apoio, onde, pela primeira vez, recebeu a atenção e os cuidados necessários por conta da extrema situação de vulnerabilidade que vivenciava.

Ester precisou tratar de doenças sexualmente transmissíveis e foi encaminhada para clínicas para acompanhamento da dependência química que tinha. A mãe foi indiciada.

Há décadas, histórias como a de Ester – de crianças e adolescentes vítimas de crimes sexuais – se repetem no Ceará. Em 1º de julho de 2021, Daiana*, de 12 anos, escreveu uma carta para as irmãs relatando os estupros praticados pelo próprio pai, no município de Caucaia, na Grande Fortaleza. As violações aconteciam desde os sete, mas, segundo a vítima, ‘conseguia disfarçar bem’ e ninguém na casa percebia que a criança alegre, por dentro, estava ‘desmoronando’.

“Eu vou diser uma coisa que eu ñ tenho coragem de contar pra ninguém. É o seguinte, deis dos meus 7 anos de vida eu sou abusada pelo meu pai, sim pelo meu próprio pai. Eu não tenho medo de contar é qui a condição da minha família ñ é muito boa mesmo ele e minhas irmãs trabalhando. Ñ dá para pagar todas as contas e tudo tá bastante caro. Antes ele fazia as coisas comigo e eu não tinha coragem de fazer nada. Mas hoje em dia deis do ano passado eu concigo faser que ele ñ fassa nada comigo. Eu a uns dias atrás eu tentei denunciar ele mais não deu certo ñ cei porque. Tô cansada de ficar cendo mandada por ele e levar tudo de boa por conta das pessoas da que de casa e tambén cuando eu ñ vou de respeito com ele a mãe briga comigo. Eles ñ percebe nada porque eu concigo disfarssa bem mais agora pouco eu dei rabesaca pra ele e a mãe tava brigando comigo. Todo dia eu sou uma crianssa alegre mas por dentro é tudo desmoronado. Depois de vc ler isso denuncei ele por que eu só vouto pra casa cuando cuando ele ñ tiver mais ai. a não cer que pricise de min pra denunciar ele. eu não tô muinto lonje de casa. Tô nun lugar que pega internet então manda menssagem pro (nome de uma pessoa) que eu tô com celular dele por que eu ñ sou burra né (sic)”, dizia o texto. Em 9 de junho deste ano, o suspeito foi preso.

Drama em números

Atualmente, as estatísticas (oficiais) são eloquentes. Entre janeiro e setembro deste ano, foram registrados 1.055 crimes sexuais contra crianças e adolescentes no Ceará. O número  equivale a 72% dos 1.448 totais, que envolvem todas as faixas etárias.

Os dados fazem parte de levantamento feito pelo Diário do Nordeste com registros da Superintendência de Pesquisa e Estratégia de Segurança Pública (Supesp), da Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS).

Apesar da gravidade do problema, prisões em flagrante por crimes sexuais contra crianças e adolescentes chegam a só 13%. Até setembro, mesmo com um aumento de 20,51%, apenas 141 prisões foram contabilizadas no Estado, 24 a mais que no mesmo intervalo do ano anterior. Em 2019, foram 1.506 ocorrências de crimes sexuais em todo o Ceará. Já em 2020, o número chegou a 1.452. Nos 12 meses do ano de 2021, aconteceram 1.511 casos do tipo.

Num recorte envolvendo os primeiros nove meses de 2022, a SSPDS mostrou que os crimes ocorreram nas segundas, 17,47%, e terças-feiras, 16,16%, principalmente pela manhã, entre 8 e 10h. A vítima-alvo tem gênero feminino, 89,47%.

A área do Interior Norte tem o maior número, com 510. Na sequência vem Capital, 417; Interior Sul, 398; e Região Metropolitana de Fortaleza, 314.

A Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos (ONDH), do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, recebeu, no primeiro semestre deste ano, 78.248 denúncias de crimes sexuais contra crianças e adolescentes pelos canais Disque 100 e Ligue 180, sem especificação de modalidade. Das denúncias, 3.289 foram realizadas no Ceará. O Estado é o quinto do País e o segundo do Nordeste em denúncias.

São considerados crimes sexuais contra crianças e adolescentes: o abuso sexual e a exploração comercial.

O abuso sexual se refere a toda atividade de conotação sexual exercida, direta ou indiretamente, que envolva uma pessoa adulta e crianças ou adolescentes. Os tipos são: intrafamiliar, que ocorre em âmbito familiar; e extrafamiliar, que depende da relação entre vítima e agressor – cometido por pessoas desconhecidas ou sem vínculo afetivo nem de parentesco.

Problema endêmico

A violência sexual contra crianças e adolescentes foi reconhecida oficialmente no Brasil como violação de direitos após a promulgação da Constituição Federal de 1988 e do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em 1990.

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*Ester e Daiana são nomes fictícios