Mais de 70% de casos de abuso sexual em vítimas entre 0 e 17 anos ocorreram dentro de casa em SP
Levantamento dos últimos três anos ainda mostra que a maioria dos abusadores tem algum grau de parentesco com as vítimas
Um levantamento feito pela SSP (Secretaria de Segurança Pública) e obtido com exclusividade pelo R7 via Lei de Acesso à Informação revela que o perigo pode, muitas vezes, estar no ambiente em que as pessoas mais deveriam se sentir seguras: a própria casa. O dado revela que 72,4% dos boletins de ocorrência registrados por abuso sexual infantil se devem a fatos que ocorreram dentro dos lares, seja das próprias vítimas, seja de pessoas próximas, como familiares, vizinhos e amigos.
Dos 44.026 registros, 31.881 ocorreram em casas e apartamentos. As vítimas, entre 0 e 17 anos, relatam ter sido levadas pelo abusador tanto para quartos, cozinhas, banheiros quanto para corredores e até piscinas, onde ocorreram casos de estupro, assédio e importunação.
Os dados revelam, ainda, que a maioria dos casos foi cometida por alguém com algum grau de parentesco com a vítima — isso ocorreu em quantidade dez vezes maior do que em relação a pessoas que não têm nenhuma relação com a vítima.
O conselheiro tutelar Gledson Deziatto, que trabalha na zona oeste da capital, afirma que diversos casos do tipo chegam até a equipe mensalmente, e a maioria ocorre em ambiente familiar. “Eu sempre falo para os pais que o abusador, muitas vezes, é uma pessoa que você confia, então sempre orientamos os responsáveis a ficarem atentos aos sinais”, conta.
Segundo o profissional, quando os abusos são realizados por um dos pais, a situação fica ainda mais complicada. Quando o crime é cometido por uma terceira pessoa, a vítima se afasta, não tem mais contato, e a polícia investiga. Quando é um dos pais, avós, irmãos ou familiares mais próximos, o Conselho Tutelar orienta a essa pessoa que saia de casa; caso isso não ocorra, os responsáveis perdem a guarda da criança.
Gledson afirma que uma das situações que mais o chocaram foi a de uma menina que era abusada pelo pai. A mãe sabia e aumentava sempre o volume da televisão para não ouvir os gritos. “A irmã mais velha dessa menina também era abusada pelo pai, mas ela cresceu, se casou e saiu de casa. Depois disso, a mais nova também passou a ser violentada sexualmente por ele. A mãe sabia esse tempo todo e foi negligente.” Depois disso, a mulher perdeu a guarda da filha mais nova.
“Com esses casos, nós concluímos que uma parte muito considerável dos lares não está mais segura. Isso mostra que muitas famílias são perversas, infelizmente”, relata.
A delegada e coordenadora das DDMs (Delegacias de Defesa Mulher) Jamila Jorge Ferrari explica que há muitos pais e mães negligentes com o abuso dos filhos — isso quando eles não são os próprios abusadores.
“Tem responsável que chega aqui e põe em xeque o relato da criança, como se ela estivesse mentindo ou confusa. Mesmo assim, nós investigamos, a vítima passa por exames, fala com psicólogo, e, quando comprovado, ele até se arrepende de ter desacreditado”, diz. Ferrari afirma ainda que, às vezes, o fato de um familiar não acreditar na palavra da criança ou do adolescente pode ser uma forma de defesa, já que essas situações são “extremamente constrangedoras”.
O caso de um homem que foi preso na terça-feira (31), sob suspeita de abusar dos enteados de 5, 8, 10, 12 e 20 anos, o último com transtorno do espectro autista, foi um exemplo citado pela delegada. A mãe das vítimas sabia das violências praticadas pelo namorado nos filhos, mas não denunciou.
Além das casas, vias públicas e escolas lideram o ranking de locais onde crianças e adolescentes foram abusados nos últimos três anos, com 3.804 e 1.256 registros, respectivamente.
O cientista social e coordenador do Grupo de Trabalho de Enfrentamento às Violências da Agenda 227, Lucas Lopes, pondera sobre o fato de que essa violência não tem classe social e qualquer um pode ser a próxima vítima. “O abuso infantil é uma violência estrutural e não residual, porque ocorre em uma altíssima magnitude. Apesar dos dados, sabemos que há muita subnotificação, tem gente sendo abusada constantemente e não consegue denunciar, ou ninguém percebe para alertar os órgãos públicos”, comenta.
O especialista ainda ressalta a importância de as pessoas estarem sempre atentas, na rua, parques, eventos e qualquer local público para que, se houver algum indício, “denunciar imediatamente às autoridades”.
Ainda de acordo com a coordenadora das DDMs, a maioria das denúncias chega por meio de escolas ou do Conselho Tutelar e, a partir do momento em que a polícia é notificada, um inquérito é instaurado para se tentar chegar ao abusador.
Na sequência, os policiais passam a ouvir testemunhas, verificam informações ao redor do local dos fatos, por meio de câmeras de segurança, por exemplo, mas a principal busca é a prova material. “A vítima é levada para fazer exame de corpo de delito e uma avaliação psicológica para entender como aquela violência ocorreu”, explica.
Ferrari afirma que tanto a polícia quanto os demais órgãos que atuam diretamente com essas ocorrências, como o Conselho Tutelar, se preocupam em não fazer com que essa criança ou adolescente precise falar constantemente sobre o assunto. Então, para as investigações, a pessoa que denunciou o abuso é ouvida, e a vítima só fala sobre isso com algum profissional especializado.
Além da busca por informações quando há uma denúncia específica, a polícia vai atrás de testemunhas e vasculha o celular dos suspeitos. Isso porque muitos fazem vídeos da cena ou tiram foto para colocar na deep web e dark web, onde há muita venda de imagens compradas por pedófilos.