Medo de represália inibia denúncias sobre crise dos yanomami, diz médica
A pediatra Priscila Tatiana Gonçalves, de Taubaté (SP), realiza atendimentos com indígenas há quase uma década.
Ela é uma das voluntárias da ONG Expedicionários da Saúde (EDS), que desde 2004 planeja expedições para realizar consultas, exames e cirurgias em territórios indígenas espalhados pela Amazônia.
Em novembro de 2022, a médica integrou uma comitiva que realizou uma ação emergencial de saúde no território yanomami.
Ao longo de dez dias, ela integrou uma equipe com outro colega médico e dois enfermeiros que visitou cinco unidades de saúde indígena (Casai-Boa Vista, Xitei, Surucucu, Missão Catrimani e Demini), fez atendimentos médicos e distribuiu insumos e medicamentos básicos.
Em entrevista à BBC News Brasil, Gonçalves disse que o cenário já era “terrível” e “absurdo”. Ela também explicou que a crise só ganhou uma proporção maior agora porque há uma “abertura para diálogo” e menos risco de represálias.
“Até recentemente, algumas enfermeiras que atuam nesses locais compartilhavam histórias de que sofriam vários tipos de repressão. Alguns profissionais de saúde que trabalhavam lá há anos foram demitidos desde que a coordenação do serviço foi trocada. E os coordenadores que foram nomeados não tinham nenhuma afinidade com o assunto, nunca trabalharam com saúde indígena”, relatou.
A pediatra também destacou alguns casos marcantes que marcaram os dez dias de trabalho — como a morte de uma criança indígena com malária cerebral que estava numa região remota, sem acesso a qualquer tratamento.
Abaixo, alguns trechos da entrevista.
BBC News Brasil – Mas se o problema com os yanomami já acontece há alguns anos, por que ele ganhou essa dimensão nacional só agora? A situação de fato piorou recentemente ou ela foi sempre ruim?
Gonçalves – A situação é completamente diferente nas regiões de serra, pois os yanomami que habitam esses locais já têm uma dificuldade maior de obter alimentos. O que vimos recentemente, e está muito claro em relatórios de outras instituições, como o Instituto Socioambiental, é o avanço das áreas de garimpo.
Nós descemos nas mesmas pistas usadas pelos garimpeiros e eles estavam o tempo todo com a gente. Outra coisa que observamos foi a contaminação da água. As mulheres yanomami costumam passar o dia coletando pequenos crustáceos em igarapés, que são uma fonte importante de proteína. Outras fontes de proteína são a caça e a pesca. E dava pra ver que eles simplesmente não tinham mais acesso a isso. Ou seja, não tinham como obter os tipos de proteína mais comuns da dieta deles.
Mesmo as frutas estavam diferentes. Eles consomem o jambo, que é uma fruta grande. Nessa última entrada, vimos indígenas comendo o fruto pequeno, ainda verde, porque não tinham outras opções de alimento.
As crianças que atendemos estavam muito desnutridas e pareciam estar há anos sem receber nenhum tipo de medicamento, como os vermífugos. Algumas eliminavam vermes pela boca. Outras tinham o abdômen muito amplo, um sinal claro de verminose, e as demais partes do corpo muito emagrecidas, num claro sinal de desnutrição. Numa situação dessas, qualquer problema de diarreia ou pneumonia pode levar a óbito em poucos dias.
Ou seja, as crianças das regiões de garimpo eram muito diferentes de qualquer indígena de outras áreas. A diferença é muito gritante. Quando chegamos, olhamos aquilo e ficamos sem saber por onde começar. Sabíamos que a situação era grave. Sabíamos que as crianças precisavam sair dali para fazer uma recuperação nutricional numa clínica. Mas isso era impossível, não conseguiríamos remover todos aqueles jovens para deixá-los 30 ou 40 dias internados num outro lugar.
Em outros territórios indígenas, até vemos quadros de desnutrição. Mas eles são agudos, provocados por uma deficiência nutricional específica, porque faltou algum alimento temporariamente. Em certas regiões yanomami, o problema era geral. Vimos desnutrição, casos de malária sem tratamento, quadros com diarreia e pneumonia. E o pior de tudo é que todas são doenças com tratamento. Dava pra ver que as crianças estavam tristes, quando o estado normal delas é de alegria, de brincar o tempo todo, de interagir com os outros.
BBC News Brasil – Mas quantas crianças eram acometidas por esse quadro que a senhora descreveu? Qual a proporção de afetados em relação ao tamanho da população?
Gonçalves – Para você ter uma ideia, visitamos regiões com cerca de 150 indígenas, dos quais 40 eram crianças. Dessas, ao redor de 30 se encontravam num estado de desnutrição grave e as outras 10 estavam em vias de iniciar um quadro desses. Esses não são números exatos, mas dão uma ideia do tamanho do problema.
Um dos enfermeiros que estava com a gente relatou que foi para o Haiti em 2010. Naquela catástrofe, as pessoas andavam pelas ruas sem rumo. E ali, nessa região yanomami, a sensação era a mesma. Estávamos diante da catástrofe de toda uma população.
A região do Surucucu conta com um centro de saúde em que há um médico. E comunidades inteiras vão para lá, após caminharem por quatro, cinco ou seis dias. Eles preferem ficar perto desse posto porque sabem que ali há a possibilidade de comer e receber tratamento. Eu nunca estive num campo de refugiados de guerra, mas acredito que a situação que vimos era similar.
BBC News Brasil – Mas esse é um problema que se acentuou nos últimos anos? Ou é algo que já se arrasta por décadas?
Gonçalves – Eu não consigo contabilizar exatamente isso, mas o que vimos nesses últimos quatro anos foi o fechamento de muitos dos centros de saúde da região. Alguns deles, inclusive, foram convertidos em áreas de garimpo. Os garimpeiros tomaram conta desses centros, a ponto de os profissionais de saúde não conseguirem mais entrar ali.
Ou seja, a população local deixou de ter acesso às consultas de rotina e à vacinação. Fora que, diante de um problema de saúde grave, você não consegue transferir a criança ou o adulto para um centro mais capacitado.
Outro ponto é que as medicações não chegavam. Na entrada que fizemos no final de 2022, compramos remédios contra verminoses. O Ministério da Saúde tem alguns protocolos que determinam a aplicação desses remédios de tempos em tempos. Pelo menos uma vez por ano, você oferece esse tratamento para eliminar os vermes daquela população.
Isso é importante para que as crianças consigam ter um desenvolvimento nutricional adequado. Agora, se ela tem uma verminose importante, esse é mais um motivo para que tenha uma perda de desenvolvimento.
Vimos que todas aquelas crianças estavam sem receber a medicação há anos. Se você olhar as listas do Ministério da Saúde, há informação de que o remédio foi comprado e entregue. Mas ele nunca chegou até lá.
BBC News Brasil – Do ponto de vista técnico, como todas essas questões engatilhadas a partir do garimpo — como a malária, a desnutrição e a falta de assistência em saúde — afetam a saúde das crianças?
Gonçalves – A falta de um aporte nutricional adequado faz com que a criança sofra com o agravamento de várias outras doenças. Além disso, a desnutrição impede o desenvolvimento do cérebro e do corpo.
E foi o que vimos nesta última entrada que fizemos. As famílias não tinham mais roças, frutas para consumo, pesca, caça ou crustáceos. Isso porque as comunidades geralmente ficam próximas de uma fonte de água, como um rio ou um igarapé. Só que o garimpo se instalou junto das aldeias.
Leia a entrevista completa aqui.