O alerta da ciência sobre uma infância longe do verde: “Precisamos trazer as crianças de volta para o mundo real”
O confinamento devido à pandemia acabou — e faz tempo. Mas o confinamento, para muitas crianças, ainda não. Se antes o isolamento era uma medida sanitária, hoje ele se mantém de forma silenciosa, dentro das rotinas apressadas, dos apartamentos fechados e das telas sempre ligadas. A infância, que antes corria em quintais, subia em árvores e catava pedrinhas, virou uma infância indoor. Os efeitos desse afastamento da natureza são mais profundos do que se imagina – e não são apenas teoria.
Uma pesquisa recente publicada no JAMA Network Open, que analisou mais de 2 mil crianças entre 2 e 5 anos, nos Estados Unidos, revelou que aquelas que vivem próximas a áreas verdes apresentam significativamente menos sintomas de ansiedade e tristeza. O estudo reforça o que a ciência vem dizendo há anos: o contato com ambientes naturais não é apenas recreativo: ele protege a saúde mental, fortalece o corpo e desenvolve o cérebro infantil.
No Brasil, dados da pesquisa O Papel da Natureza para a Saúde das Crianças no Pós-Pandemia, realizada pela Rede Conhecimento Social, com mil famílias com crianças de até 12 anos, mostraram que, antes, 50% delas brincavam ao ar livre até uma vez por semana. Com a pandemia, esse número caiu para 34%. Enquanto isso, o tempo médio em frente às telas ultrapassa cinco horas diárias em algumas faixas etárias, com o Brasil ocupando o segundo lugar no ranking mundial de tempo de tela, segundo a plataforma Electronics Hub.
A desconexão com o mundo natural virou regra e não exceção. “Hoje, as crianças são criadas em ambientes completamente artificiais, com seus corpos e sentidos encarcerados justamente na fase em que mais precisam se movimentar, explorar e experimentar”, alerta a pesquisadora Mônica Oliveira, da Fiocruz, fundadora do Instituto Conexão Natureza.
“Essa ausência não é neutra: afeta o desenvolvimento cognitivo, emocional, motor e até espiritual. Precisamos trazer a infância de volta para o mundo real.” Uma geração tem crescido longe do mato, do chão, da água e do vento – e adoece por causa disso. Mais do que nunca, é hora de repensar: que infância estamos oferecendo às crianças de hoje?
Desconexão ao longo do tempo
O distanciamento das crianças em relação à natureza não aconteceu de uma vez: foi um processo gradual, silencioso e profundamente enraizado em mudanças sociais, tecnológicas e urbanas. A expansão das cidades, a insegurança nas ruas, a rotina acelerada dos adultos e o aumento do tempo de tela criaram uma combinação potente que encurtou drasticamente o espaço e os momentos dedicados ao brincar ao ar livre. “Nos últimos 50, 60 anos, o território das crianças encolheu. Antes, elas iam sozinhas à rua, à praça, brincavam com liberdade. Hoje, muitas estão confinadas dentro de casa e, mais ainda, em uma telinha de 5 por 10 centímetros. A natureza virou um lugar de exílio”, diz o pediatra Daniel Becker.
Esse fenômeno é tão significativo que gerou a expressão “déficit de natureza”. O termo foi cunhado em 2005 por Richard Louv, autor do livro A Última Criança na Natureza (editora Aquariana), e hoje é utilizado por médicos, educadores e neurocientistas para nomear o impacto físico e mental da ausência do contato dos pequenos com ambientes naturais. Sintomas como irritabilidade, dificuldade de concentração, apatia, distúrbios do sono e sedentarismo podem estar diretamente ligados a essa infância restrita, segundo a pediatra Luiza Menezes. “Hoje, vemos menos crianças com ‘joelhos ralados’ e mais com queixas de ansiedade, depressão, obesidade e até autolesões. As emergências mudaram. A infância está mais protegida, mas também muito adoecida”, alerta.
A neurocientista e professora Carla Tieppo complementa sobre o quanto as crianças perdem oportunidades vivendo dessa forma: “Ao retirá-las da natureza e colocá-las em ambientes controlados e pasteurizados, tiramos delas estímulos essenciais para o desenvolvimento sensorial e emocional. Uma trilha exige atenção. Um galho, equilíbrio. O cheiro da terra, o som dos pássaros, a diversidade das formas – tudo isso ensina a ler o mundo. E sem isso, a criança perde nuances”.
Enquanto as telas oferecem estímulos prontos e repetitivos, a vida longe de quatro paredes convida à descoberta. E é justamente essa ausência de desafio sensorial, motor e emocional que está preocupando os especialistas.
O artigo científico da pesquisadora Mônica Oliveira e da neurocientista Bruna Velasques, Transtorno do Déficit de Natureza na Infância – Uma perspectiva da neurociência aplicada à aprendizagem, diz que tal transtorno está relacionado ao aumento de problemas como TDAH, obesidade, ansiedade e até mesmo prejuízos na aprendizagem.
A advogada Vanessa Santos, 40, sentiu isso com a filha. “A pandemia, com os meses presa dentro de casa e o isolamento social, fez com que minha filha desenvolvesse diversos sintomas de ansiedade. O que a ajudou a melhorar foram a terapia e ter mais momentos ao ar livre. Hoje não abro mão disso: vamos ao clube duas vezes na semana e, aos sábados e domingos, a prioridade é sempre estar em contato com a natureza”, conta a mãe de Manuela, 10 anos. A questão é clara: quanto mais as crianças se afastam do verde, mais perdem em saúde, criatividade, autonomia e equilíbrio.
Tempo de resgate
Discutir sobre infância e natureza não é nostalgia – é ciência, é urgência, é saúde pública. O contato com o ambiente natural não deve ser visto como algo “extra”, mas como parte essencial do desenvolvimento infantil. A boa notícia? Os benefícios são muitos – e já começam a ser reconhecidos em diferentes áreas.
No corpo, por exemplo, há melhora no sistema imunológico, na coordenação motora e na regulação do sono. E tem mais: “A tal da ‘vitamina N’, como alguns chamam o contato com a natureza, fortalece também a saúde cardiovascular. Além disso, reduz alergias, melhora a atenção e ainda afasta as crianças do consumismo excessivo que reina nas telinhas”, explica Daniel Becker.
No campo emocional, estudos apontam redução do estresse tóxico, comuns já na infância, e aumento do bem-estar. “Brincar ao ar livre favorece a autonomia, a empatia e a cooperação entre pares. É uma experiência de liberdade que impacta o desenvolvimento social e emocional das crianças”, diz a pesquisadora Maria Isabel Barros, especialista em infâncias e natureza, do Instituto Alana. Do ponto de vista neurológico, os efeitos são igualmente relevantes, como o desenvolvimento de áreas cerebrais ligadas à atenção, memória, criatividade e regulação emocional. “Não é apenas uma área do cérebro que se ativa, mas um conjunto de funções ligadas à leitura do mundo”, afirma Carla Tieppo.
A psicanalista Mônica Pessanha reforça outro ponto positivo: o rendimento escolar. “A exposição à natureza pode aliviar a fadiga mental, melhorando o foco e a atenção nas escolas. Ela é essencial”, diz. Falar sobre isso, portanto, é muito mais do que defender o direito ao lazer – é garantir um futuro mais saudável, criativo e equilibrado para nossas crianças.
Impacto na educação
Se as crianças passam boa parte do seu tempo dentro das escolas, é urgente repensar o que encontram por lá: salas fechadas, pátios de cimento, janelas trancadas. Muitas instituições seguem tratando o contato com a natureza como algo periférico quando, na verdade, deveria estar no centro da proposta pedagógica. Um estudo realizado pela pesquisadora Mônica Oliveira, vencedor do 2o Prêmio Ciência Pela Primeira Infância, revelou que alunos de pré-escolas públicas do Rio de Janeiro passam em média oito horas por dia em ambientes totalmente fechados. “Estamos formando crianças em espaços artificiais, longe do céu, da terra e da vida ao redor. Isso compromete o neurodesenvolvimento e a capacidade sensorial delas. As crianças estão se desenvolvendo em isolamento físico e sensorial”, afirma.
De fato, instituições que incluem práticas de educação ao ar livre relatam ganhos significativos em atenção, engajamento e habilidades socioemocionais. Iniciativas como as escolas da floresta (forest schools), já conhecidas na Europa e com crescente presença no Brasil (leia mais em crescer.com.br), mostram que é possível transformar qualquer espaço externo em ambiente de aprendizagem viva – mesmo nas cidades.
A pedagoga Flávia Moreira atua na Maple Bear Penedo, a primeira “escola rural” da rede, situada numa Área de Proteção Ambiental (APA). Para ela, o verde é uma ferramenta potente no processo de educar, já que a educação perpassa o corpo e precisa ser compreendida de forma holística (que visa o desenvolvimento intelectual, emocional, físico e social). “Quando inserimos a natureza no cotidiano escolar, favorecemos a formação de alunos mais empáticos, conectados com o tempo e com o que os cerca, desenvolvendo uma valorização sensível daquilo que realmente importa”, afirma Flávia Moreira. Para a pedagoga, esses benefícios não precisam acontecer somente quando se tem o privilégio de estar numa escola cercada de natureza.
“O verde deve ser, antes de tudo, uma escolha consciente da equipe gestora e dos professores. Quando essa escolha está clara e compartilhada, nenhum espaço é limitador. É sempre possível trazer a natureza para dentro da escola, mesmo quando ela está situada em um verdadeiro ‘arranha-céu’. O primeiro passo é a intencionalidade: o projeto precisa estar alinhado aos temas já trabalhados, para não se tornar uma ação isolada ou descontextualizada”, diz. É possível começar com pouco.
“Toda escola deveria ter uma área naturalizada. E onde não for possível, que se quebre o cimento do pátio e plantem-se grama e árvores. A sombra de uma árvore pode melhorar o conforto térmico, a saúde e o humor de toda a comunidade escolar”, defende o pediatra Daniel Becker. O Instituto Alana, que há anos atua promovendo o vínculo entre infância e meio ambiente, colaborou com o Marco Legal Criança e Natureza, projeto de lei de 2024, que propõe políticas públicas para integrar o verde à educação e às cidades. “Reintegrar a natureza à experiência das crianças urbanas é um ato de resistência e cuidado. É garantir o direito ao brincar, ao pertencimento e à saúde”, defende Maria Isabel Barros, especialista do instituto.
Sempre ao lado
Engana-se quem pensa que oferecer contato com o verde depende de viagens a sítios distantes ou férias em meio à mata. Ele pode (e deve) fazer parte da rotina, mesmo em cidades grandes, mesmo sem quintal ou com pouco tempo. “Qualquer natureza já é um pouco de saúde”, diz a pediatra Luiza Menezes, especialista em saúde mental infantil. Ela sugere começar pelo simples: caminhar até a escola em vez de ir de carro, quando possível, cuidar de uma plantinha na varanda explorar o parque do bairro no fim de semana. “Brincar na terra, observar as folhas, regar uma horta. Tudo isso tem impacto profundo no desenvolvimento e não exige dinheiro, só intenção e presença”, diz.
A neurocientista Carla Tieppo ressalta que essas pequenas experiências despertam e refinam os sentidos. “Uma criança que toca diferentes texturas, sente cheiros variados, percebe o som do vento ou da água desenvolve um repertório sensorial muito mais rico, o que fortalece seu cérebro e suas emoções.” Trazer a natureza para mais perto também significa mudar a nossa própria relação com o tempo. “Não adianta levar a criança ao parque e ficar o tempo todo no celular. Estar em contato não é o mesmo que estar em conexão. Precisamos nos entregar à experiência junto com elas”, resalta Mônica Oliveira, da Fiocruz.
Dever de todos
O contato com o ambiente natural não é um detalhe na infância. É um direito, uma necessidade e uma urgência. “Ele é o melhor lugar para uma criança se desenvolver, e nós sabemos disso intuitivamente. Se você fechar os olhos e imaginar uma criança feliz, dificilmente vai visualizá-la sentada num sofá. Vai vê-la correndo, explorando, brincando com outras crianças… e tudo isso acontece, quase sempre, do lado de fora”, afirma o pediatra Daniel Becker. Não se trata de romantizar o mato ou ignorar os desafios urbanos. É sobre reconhecer que uma infância sem vínculo com o mundo natural se torna empobrecida. Como explica Maria Isabel Barros, do Instituto Alana: “A desconexão da criança com a natureza compromete sua saúde física, emocional, cognitiva e até ética. Ela cresce sem vínculo com a vida ao redor, com pouca empatia e senso de pertencimento”.
Mas também há esperança. Parques que se tornam extensões do quintal, escolas que desemparedam suas aulas, famílias que trocam a pressa pela presença e a tela pelo tato. Mais do que um estilo de vida, essa reconexão é uma responsabilidade coletiva. Cabe às famílias, às escolas, aos profissionais da saúde, às políticas públicas e à sociedade como um todo garantir que o verde volte a fazer parte do cotidiano das crianças. Não como cenário, mas como caminho. Porque proteger a infância é também proteger a Terra. E vice-versa.
Para saber mais sobre o direitos das crianças, conheça a newsletter Infância na Mídia.