O drama de Juan e das centenas de crianças venezuelanas que cruzam sozinhas a fronteira com o Brasil

Veículo: BBC Brasil - BR
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Com hematomas e arranhões, Juan*, de 9 anos, chegou completamente sozinho a Pacaraima, em dezembro, e foi encaminhado para um abrigo em Boa Vista. Ele é um dos 1.896 menores de idade que chegaram ao Brasil desacompanhados ou sem o responsável legal de agosto de 2018 a junho deste ano.

Era 16 de dezembro de 2018. Cheio de hematomas e arranhões, Juan* apareceu desacompanhado no Centro de Triagem do Ministério do Desenvolvimento Social, em Pacaraima, na fronteira do Brasil com a Venezuela.

Era a segunda vez que o garoto de nove anos tentava migrar sozinho para o Brasil. À funcionária brasileira que o atendeu ele contou que morava nas ruas da Venezuela, em Santa Elena de Uiarén, com os pais, em situação de miséria.

O que mais temia era voltar ao convívio dos parentes que, segundo o menino, o agrediam e lhe "negavam comida".

Juan foi encontrado vagando pelas ruas de Pacaraima, após cruzar a fronteira "sozinho e faminto", segundo relatório da equipe que atendeu a criança. Um senhor venezuelano o resgatou, deu abrigo e comida por uma noite e levou o menino ao centro de triagem, onde defensores públicos da União entrevistam e analisam cada caso de criança e adolescente que chega ao Brasil.

Encaminhado depois ao Conselho Tutelar de Pacaraima, o menino foi reconhecido por uma conselheira que confirmou que ele tentava migrar sozinho para o Brasil pela segunda vez, "pedindo ajuda para fugir dos maus-tratos dos pais".

Na primeira tentativa, foi devolvido à Venezuela e encaminhado ao Conselho Tutelar da cidade de Santa Elena, após os conselheiros venezuelanos garantirem às autoridades brasileiras que ele seria encaminhado para um abrigo.

Pelo visto, foi devolvido aos pais e à vida na rua.

"Observa-se inúmeras marcas no corpo da criança e ele afirma que são todas causadas pelas agressões físicas cometidas por seus pais", diz o relatório do comitê de triagem a que a BBC News Brasil teve acesso.

Para impedir que o menino fosse entregue novamente aos pais, os defensores federais o encaminharam para uma casa de acolhimento de crianças e adolescentes na capital de Roraima, "para que seja cuidado pela legislação brasileira".

Quase 2.000 crianças

Juan é uma das 1.896 crianças e adolescentes que, para fugir da violência e da miséria na Venezuela, cruzaram a fronteira até o Brasil sozinhos ou acompanhados de pessoas que não são seus responsáveis legais, entre agosto de 2018 e junho deste ano.

Quase 400 deles chegaram à cidade de Pacaraima totalmente desacompanhados, segundo dados inéditos obtidos pela BBC News Brasil junto à Defensoria Pública da União.

Esses números impressionam porque representam 52,8% do total de jovens venezuelanos com menos de 18 anos que migraram ao Brasil no período e foram atendidos pela Defensoria.

Destes, 11,8% são crianças e adolescentes que chegaram a Pacaraima completamente sozinhos. O restante, 41,7%, são menores que vieram acompanhados de adultos que não são seus responsáveis legais, como tios, irmãos, avós ou pessoas que simplesmente se apresentam como conhecidos ou amigos dos pais deles.

Enquanto são atendidas pelos funcionários do setor de triagem na fronteira do Brasil com a Venezuela, as crianças recebem papel e lápis de cera. Grande parte dos desenhos mostra o amor desses pequenos refugiados pela Venezuela e pelo Brasil, o país que escolheram como acolhida.

Mas a tarefa dos defensores em identificar a real situação da criança e o melhor destino para elas não é fácil. A falta de documentação é citada pelos funcionários brasileiros como uma das maiores dificuldades no atendimento dos menores que chegam ao Brasil.

"Mesmo nos casos em que a criança vem acompanhada dos pais, há a dificuldade de falta de documentação que comprove o parentesco. Nesses casos, é feito um trabalho de diálogo com as crianças e adolescentes, verificação e interlocução com outras pessoas para confirmar as informações", diz a secretária de Direitos Humanos da Defensoria Pública da União, Lígia Prado da Rocha.

No total, 3.597 crianças e adolescentes venezuelanos cruzaram a fronteira até Pacaraima e foram atendidos pela Defensoria Pública da União de agosto de 2018 a junho de 2019.

Desses, 28% não carregavam qualquer documento ou cópia de identidade e 47% das crianças e adolescentes acompanhados do suposto pai ou mãe não tinham documentos que pudessem comprovar esse parentesco.

Especializado no atendimento de jovens refugiados, o juiz Paulo Fadigas, da Vara da Infância e Juventude de São Paulo, explica que a falta de documentação é um problema grave, porque há o risco de o adulto que se diz parente da criança não ter qualquer vínculo com o menor.

Na Venezuela, a escassez de produtos e a deterioração dos serviços públicos tem tornado a espera por um passaporte ou segunda via de documento extremamente longa. Além disso, o país não emite carteira de identidade para crianças menores de 9 anos.

"Quando o fluxo de migrantes e refugiados é muito grande, corre-se o risco de estabelecer casamentos ilegais ou adoções ilegais. Há casos de casamentos infantis. O homem diz que é tio, primo ou irmão, mas está explorando a criança ou adolescente", disse Fadigas à BBC News Brasil.

Qual é o perfil do menor que migra sozinho?

A defensora federal Lígia Prado da Rocha afirma que a maioria dos menores que chegam ao Brasil sozinhos, sem qualquer parente ou adulto responsável, tem entre 15 e 17 anos, e vem em busca de trabalho. Alguns moravam nas ruas ou em situação de miséria, enquanto outros querem juntar dinheiro para ajudar a família.

Mas há também alguns casos como o de Juan, de crianças com menos de 12 anos. "São casos mais pontuais. Algumas dessas crianças relatam maus tratos ou trabalho em condições desumanas", explica Rocha.

Outra situação delicada é quando a criança chega acompanhada de um adulto com quem não tem qualquer parentesco.

"É difícil apurar a intenção desse adulto com essa criança muito pequena. Nesse caso, a gente procede com a institucionalização da criança e, com relação ao adulto, é feito um procedimento de investigação para apurar as circunstâncias que o levaram ao convívio com a criança", diz a defensora.

Também chama a atenção o grande número de casais de adolescentes ou de garotas menores de idade em "união estável" ou "casadas" com homens mais velhos.

"Em Pacaraima, observa-se no dia a dia situações de adolescentes entre 14 e 16 anos acompanhados de supostos parceiros com grande diferença geracional ou de terceiros que não demonstram afeto ou vínculo familiar", diz relatório deste mês da Defensoria Pública da União.

Nesses casos, o trabalho dos defensores públicos e conselheiros tutelares é verificar se o adolescente não está sendo explorado, traficado ou submetido a uma relação contra a sua vontade.

"A gente conversa com o casal, verifica se há um vínculo afetivo. Se desconfiarmos da situação, principalmente se houver discrepância de idade, encaminhamos a menor para casas de acolhimento", explica Lígia Prado da Rocha.
 

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