Onde a alfabetização funciona no Brasil?
Formação continuada de professores, suporte educacional, metodologias personalizadas e avaliações regulares são alguns elementos que fizeram de Sobral, no Ceará, e Lagoa Santa, em Minas, exemplos de boas experiências na alfabetização.
“Existe uma concepção de alfabetização que acha que você precisa alfabetizar para o trabalho, uma perspectiva pequena da alfabetização. E existe a alfabetização emancipadora do sujeito, que constrói o sujeito capaz de se inserir na sociedade em uma perspectiva crítica e participativa”, explica Silvia Gasparian Colello, professora e pesquisadora da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP).
A descontinuidade de políticas públicas voltadas para a alfabetização no Brasil dificultou a produção de resultados a longo prazo, o que se reflete até hoje na aprendizagem dos estudantes. Em um intervalo de dez anos, três políticas de alfabetização diferentes foram adotadas. A mais duradoura foi o Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (Pnaic), mantida de 2012 a 2019, que tinha como foco a alfabetização de crianças até o 3.º ano do ensino fundamental.
Ainda que os indicadores apontem um déficit na alfabetização, algumas redes de ensino municipais têm apresentado um trabalho sólido no letramento de crianças ao longo do tempo. Assim, alguns fatores levaram Sobral e Lagoa Santa a superar a média nacional.
Políticas Públicas
Apesar das diferenças regionais, o ponto de virada na educação básica das duas pequenas cidades foi o mesmo: o baixo nível de alfabetização. Até 1997, o município cearense apresentava dificuldades estruturais no ensino público, como a defasagem entre idade e série e a escassez de professores especializados.
Em Minas Gerais, Lagoa Santa “vivia tentando fazer dar certo”, conta a professora alfabetizadora Mirlene Barcelos. “No fim dos anos 1990, tive turmas de alfabetização muito boas, em que todos finalizaram o ano alfabetizados, mas essa não era uma realidade da rede”, recorda ela, que há dez anos é representante da Escola Municipal Mércia Margarida no núcleo Alfaletrar.
Criado em 2006 pela educadora Magda Soares, então professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que morreu este ano, o projeto Alfaletrar busca reunir os professores semanalmente para pensar estratégias pedagógicas para o letramento.
Com 97% das crianças alfabetizadas no 3.º ano do ensino fundamental, segundo dados da Secretaria de Educação de Lagoa Santa, o programa virou política pública e hoje atende todas as 18 escolas da rede municipal de ensino.
Anos antes, em 2001, a gestão municipal de Sobral estabeleceu como meta a erradicação do analfabetismo infantil. Para isso, as escolas passaram a ser monitoradas pelas chamadas avaliações externas, em que a secretaria da educação acompanha o rendimento de alunos, docentes e gestores escolares. O desafio de reestruturar a educação básica gerou resultados acima da meta estipulada desde a criação do Ideb, em 2007.
Entre a teoria e a prática
Implementadas em 2020 pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC), as dez competências gerais que os estudantes da educação infantil e do ensino fundamental devem desenvolver foram pensadas com o objetivo de alinhar a escola com as demandas do contexto social.
“A política educacional de Sobral tem questões que são consolidadas e inegociáveis”, observa Herbert Lima, secretário municipal de Educação de Sobral. Os indicadores de sucesso do município se pautam, principalmente, numa alfabetização iniciada ainda na educação infantil e baseada em diferentes metodologias – desde métodos ativos, como o fônico, até o construtivista, que entende que o aluno é parte da construção do seu aprendizado.
Já na cidade mineira, a abordagem é chamada de “casinha”. “No início, era tudo muito novo, era uma forma de trabalhar que não nos permitia chamar de método. Porque não era a forma como a gente ensinava, era a forma como a criança aprendia”, relembra Mirlene, de Lagoa Santa.
A “casinha” existe desde a criação do Alfaletrar e trabalha as famílias silábicas em casas de papel de seis andares. A cada andar, uma vogal (a, e, i, o, u e õ), e ali é feita a divisão de sílabas. “As crianças adoram a casinha, por ser muito imaginativa”, afirma a professora.
Em conjunto com o material fornecido pelo Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD), as redes fazem a complementação dos recursos pedagógicos. “Hoje em dia não está fácil chamar a atenção de uma criança para as coisas da escola. Com tanta facilidade com o celular em mãos, a gente precisa, mesmo, se esforçar muito para fazer desse processo algo prazeroso”, diz Mirlene, que orienta os docentes a escolher as leituras a partir dos interesses da turma.
Formação de professores
Até 2017, 21,6% dos professores da educação básica brasileira não possuíam superior completo, conforme os dados do Censo Escolar. Estabelecida como meta pelo Plano Nacional de Educação (PNE), a qualificação dos professores é um dos fundamentos da educação de qualidade.
Em funcionamento contínuo há 17 anos, a Escola de Formação Permanente do Magistério e Gestão Educacional (Esfapege) de Sobral estrutura a capacitação dos professores desde o plano de aula. Funcionando de maneira remota, a escola produz materiais de formação para todas as etapas do ensino básico, com coordenadores pedagógicos, atendimento educacional especializado e educadores sociais. “A gente trabalha a formação da ideia de resgate do que seja a essência do ofício de ensinar, com materiais estruturados e rotina escolar bem definida”, resume Herbert.
Para além das reuniões semanais herdadas da professora Magda Soares, Lagoa Santa acrescentou à rotina a supervisão individualizada de cada professor dentro de todas as escolas. “A gente não trabalha de forma separada as etapas da leitura e escrita, é tudo parte de um contexto só. No horário da Educação Física, o professor vai até a minha sala e, naquele momento, a gente discute a escolha dos textos; o planejamento de aula é quinzenal”, explica Mirlene, que atua como uma das coordenadoras do núcleo Alfaletrar. A partir das demandas e dificuldades localizadas, uma vez por mês, é feita uma oficina de formação.
Trajetórias
Seguindo o exemplo de redes de ensino já consolidadas, outros Estados se mobilizaram para o fortalecimento da alfabetização no pós-pandemia. A partir do Compromisso Nacional Criança Alfabetizada, apresentado em junho pelo governo federal, Pará e Maranhão iniciaram programas de recuperação de aprendizagem.
O Alfabetiza Pará tem como objetivo, em parceria com os 144 municípios paraenses, contribuir com recursos técnicos, pedagógicos e financeiros essenciais para promover a alfabetização adequada. A meta é assegurar que todas as crianças com até 7 anos de idade tenham o domínio pleno das habilidades de ler e escrever.
No Maranhão, o engajamento conta com o apoio do Instituto Natura e da Parceria pela Alfabetização em Regime de Colaboração (Parc). O objetivo é garantir alfabetização na idade certa e retomar o Programa Escola Digna, premiando as melhores gestões escolares, para conseguir atingir as metas do Plano Estadual de Educação.
Na ponta do lápis
- 21,6% dos professores da educação básica não têm curso superior
- 2001 foi o ano em que Sobral estabeleceu seu bem-sucedido sistema
- 144 municípios do Pará devem ser impactados com novo programa
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