Os desafios para reinserir um milhão de crianças e adolescentes nas escolas

Veículo: Carta Capital - SP
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As escolas brasileiras começam o ano letivo de 2023 com uma ausência injustificável: ao menos um milhão de crianças e adolescentes não estão presentes nas aulas por terem deixado de fazer parte dos sistemas de ensino. Dados do Censo Escolar da Educação Básica 2022 apontam que 1,04 milhão de estudantes dos 4 aos 17 anos estavam fora da escola.

Os maiores níveis de exclusão escolar se concentram entre crianças de 4 anos: 399.290. Entre as faixas de 5 e 6, o total chega a 151.985. Também são expressivas as taxas de evasão entre os adolescentes de 17 anos: 241.641 deixaram a escola antes de completar o Ensino Fundamental ou o Ensino Médio. Dos 14 aos 16 anos, a soma dos que deixaram a escola nas mesmas condições é de 250.497.

A ausência desses alunos indica desafios aos representantes da União, dos estados e dos municípios, pois é dever do Estado oferecer educação básica e garantir igualdade de condições para o acesso e a permanência dos estudantes.

Ao comentar os dados do Censo, o ministro da Educação, Camilo Santana, reconheceu que a reinserção de crianças e adolescentes nas escolas é um desafio prioritário a ser enfrentado pela atual gestão.

“Precisamos ter estratégias para que essas crianças frequentem as escolas no País”, admitiu Camilo, que reiterou a necessidade de os governos municipais, estaduais e federal agirem em conjunto. “Durante oito anos como governador, pude acompanhar a falta de diálogo que ocorreu no MEC. Sem um regime de colaboração forte com a coordenação do ministério, dificilmente haverá sucesso nas políticas.”

O problema da evasão escolar mostra uma fragilidade do Estado na tarefa de garantir vagas à população, sobretudo às parcelas mais vulneráveis, avalia o coordenador de Educação do Instituto Alana, Gabriel Salgado.

“Quando a gente olha para população de 4 e 5 anos que está fora da escola, as maiores taxas estão nas regiões Norte e Centro-Oeste, proporcionalmente, e nas áreas rurais, quando comparadas às urbanas”, apontou. “E um dos motivos é a falta de vagas.”

Para o especialista, o Estado precisa caminhar em direção ao fortalecimento do direito à educação. “A obrigatoriedade da matrícula a partir da faixa etária foi pactuada justamente pelo entendimento de que toda a trajetória da criança é influenciada dali para frente. Sem contar os direitos das famílias que precisam do apoio das escolas para cumprirem outras demandas.”

A pobreza e a vida fora da escola

Além de uma questão de oferta, no entanto, a exclusão escolar é determinada por outros marcadores sociais que atravessam as famílias brasileiras, sobretudo as mais vulneráveis, e impedem que crianças e adolescentes finalizem a jornada no sistema de ensino.

Um dos principais obstáculos é a pobreza. Dados da pesquisa do Unicef As Múltiplas Dimensões da Pobreza na Infância e na Adolescência no Brasil divulgados em fevereiro mostram que em 2019 ao menos 32 milhões de meninos e meninas (63% do total) viviam a pobreza em suas múltiplas dimensões, a englobar renda, educação, trabalho infantil, moradia, água, saneamento e informação.

No caso específico da educação, mais de 4 milhões de crianças e adolescentes frequentavam a escola com atraso ou sem estar alfabetizados – quando não estavam fora dela.

O quadro piorou com a pandemia e a desigualdade de acesso pelos estudantes às atividades escolares, ministradas a distância. Em 2022, o índice de crianças privadas do direito à alfabetização subiu em relação a 2020, passando de 1,9% para 3,8%. A privação da alfabetização afetou principalmente crianças e adolescentes negros e indígenas, das regiões Norte e Nordeste, aferiu o Unicef.

O trabalho infantil também contribui com o cenário de desescolarização. Os últimos dados aferidos pela Pnad Contínua em 2019 mostraram mais de 2 milhões de crianças e adolescentes de 5 a 17 anos em situação de trabalho infantil no País, já desconsiderando o número de meninos e meninas exercendo trabalho como aprendizes, função prevista em lei.

Busca ativa: um trabalho, muitos olhares

Especialistas ouvidos pela reportagem de CartaCapital defendem que a reversão do quadro de falta de atendimento escolar deve considerar ações de enfrentamento às múltiplas violações vivenciadas por estudantes e seus familiares.

“Não há como assegurar o direito à educação sem garantirmos o direito ao transporte, à saúde, à moradia e à renda. Uma coisa não funciona sem a outra”, observa a doutora em Ciências Sociais Julia Ventura, gestora estratégica da ONG Cidade Escola Aprendiz. “Você não consegue garantir que uma criança permaneça na escola se a mãe não tiver dinheiro para pegar um ônibus e levá-la ou se essa família enfrenta outras necessidades básicas, como falta de alimentos.”

A análise é endossada por Antônio de Oliveira Lima, procurador do trabalho e coordenador da Rede Peteca, uma articulação em prol do combate ao trabalho infantil.

“Há uma relação intrínseca entre o trabalho infantil e as demais violações a que crianças e adolescentes são submetidas. Então, é preciso um olhar aproximado por parte das escolas para os estudantes que andam com baixa frequência às aulas ou que demonstram dificuldades de aprendizagem, pelo potencial de evadirem”, reforça. Ele destacou a necessidade de um diálogo entre a educação e áreas como trabalho, saúde, esporte, cultura, lazer e assistência social, a envolver conselhos tutelares e demais órgãos de defesa dos direitos de crianças e adolescentes.

Dados do Censo Escolar ilustram a preocupação dos especialistas. A Educação de Jovens e Adultos, por exemplo, tem recebido um grande contingente de estudantes que buscam concluir posteriormente a educação básica. De 2019 para 2020, aproximadamente 230 mil alunos dos anos finais do ensino fundamental e 160 mil do ensino médio migraram para a EJA.

A articulação entre as áreas é defendida pelos especialistas como um passo fundamental para estruturar uma rede de busca ativa pelos estudantes.

“A evasão escolar nos coloca diante de alguns cenários: da criança que nunca frequentou a escola, daquela que chegou a ser matriculada mas evadiu, ou daquela que apresenta infrequência, riscos de evadir”, prossegue Ventura. “A questão é que quando esse estudante nunca frequentou a escola, a educação não tem como saber que ele existe. Daí a necessidade de uma outra política tentar identificá-lo pelo município, um equipamento de assistência social, uma unidade de saúde que atendeu essa família, uma política de habitação. É preciso se valer de todas as possibilidades.”

Nesse sentido, os especialistas ainda veem desafios a serem superados, como o de uma maior participação da União e dos estados em apoio aos municípios, para fortalecer os equipamentos de proteção a crianças e adolescentes e suas equipes. A centralidade das políticas sociais também se faz necessária e, por isso, Salgado vê como um acerto a reestruturação do Bolsa Família com condicionantes relacionados  à educação – a permanência de crianças e adolescentes na escola é pré-requisito para receber o benefício.

“Isso é um chamado para um esforço coletivo, mas principalmente para uma ação do Estado de promover efetivamente o direito à educação.”

Julia Ventura acrescenta a necessidade de o País caminhar rumo ao fortalecimento de políticas de primeiro emprego para aprendizes e jovens, em intersecção com as escolas. “Acho que vale a reflexão: como as escolas podem ser mediadoras dessas atividades, fazendo com o que o trabalho seja parte do desenvolvimento integral dos estudantes?”

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