Pais analfabetos lutam para que os filhos aprendam a ler na pandemia
Samuel, de 7 anos, aprende rápido, é curioso e pergunta muito. Antes da pandemia, ganhou medalha de “aluno destaque” na educação infantil, quando morava na Serra do Mundeu, zona rural do município de Araripe, no Ceará. Mas quando a pandemia de covid-19 interrompeu as aulas presenciais, em março de 2020, ele estacionou. Analfabeta, a agricultora Zenilda Freire Barbosa, de 47 anos, mãe do menino, não conseguia ajudar nas lições que chegavam da escola no ensino a distância. “Eu não sei ler para ensinar o meu filho e aqui não tem quem ensine”, conta.
Para que o menino seguisse estudando, a agricultora decidiu enviar Samuel à casa da irmã, tia dele, na região de Pajeú, zona mais urbana de Araripe. Lá, é ensinado pela prima, que já terminou o ensino médio. “Eu não quero que meu filho se crie como eu, sem saber ler; eu quero que ele estude, aqui não ia aprender nada”, diz Zenilda, que só pôde estudar até o primeiro ano do ensino fundamental. É difícil para mim, porque ele é filho único e é tudo na minha vida.”
Há mais de um ano, a agricultora e o marido visitam o filho a cada oito dias. Quando a saudade aperta, fazem uma chamada de vídeo. Para Riqueli Ferreira Barbosa, de 19 anos, jovem que ensina Samuel, a situação é desafiadora. “Uma responsabilidade muito grande: deixo ele fazendo as atividades conforme ele entende e aí, quando ele tem dúvida, eu ajudo”, relata. “Ele gosta de estudar, se dedica bastante, mas sente falta da mãe.”
Mesmo com todas as dificuldades — as atividades são entregues pela escola essencialmente via WhatsApp e por meio de monitores que distribuem as lições impressas de acordo com a região —, Samuel já sabe ler e escrever um pouco. “Eu vejo que as professoras se preocupam, porque viam ele avançando antes da pandemia”, diz Riqueli.
Segundo a professora Maria D’eus, que leciona para a turma de Samuel, o caso do menino não é exceção. A maioria dos estudantes da escola tem pais agricultores que são analfabetos ou semianalfabetos. “Tem sido um processo bem difícil alfabetizar na pandemia, muitas vezes eu mando áudio para os pais não desistirem”, conta.
A pedagoga lembra que o primeiro problema foi chegar até as famílias. “Por ser uma zona rural, só conhecíamos as crianças. Depois, o desafio foi entregar as atividades, que voltavam em branco”, diz. “Foi quando percebemos que os pais eram analfabetos por completo ou sabiam ler muito pouco.” No Brasil, cerca de 11 milhões de pessoas não foram alfabetizadas. Em 2019, a taxa de analfabetismo era de 6,6%, de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua Educação.
A escola fica a 22 quilômetros de Araripe, já na divisa, a 15 quilômetros do município de Bodocó, em Pernambuco. Cerca de 80% dos 366 alunos do colégio são dessa região, onde a educação é multisseriada — salas de aula com alunos de diferentes séries do ensino fundamental em educação simultânea, adotadas sobretudo na zona rural do País devido ao pequeno número de matrículas. O colégio tradicional mais próximo para esses estudantes ficaria a 60 quilômetros de distância, e não há transporte público.
“A criança, no meio período, vai para a roça ajudar a capinar com um tempinho pequeno para fazer as atividades. Quando chega uma pandemia como essa, o aluno não tem quem explique, aí escreve que não fez (a atividade) porque não sabe”, diz a diretora da escola, Clotildes Nunes.
As crianças entre seis e dez anos que vivem em áreas rurais das regiões Norte e Nordeste do País foram as mais atingidas pela exclusão escolar no Brasil durante a pandemia em 2020, segundo o último relatório da Unicef em parceria com o Cenpec.
Conforme o documento, o cenário ocorre devido à precariedade das condições de vida nessas regiões, em especial nas áreas mais isoladas (ver infográfico abaixo).
Só em 2020, das 5,1 milhões de crianças brasileiras que ficaram sem acesso à educação, mais de 2 milhões (41%) tinham entre 6 e 10 anos, faixa etária mais afetada pela pandemia, segundo levantamento da Unicef, braço da Organização das Nações Unidas (ONU) para a infância, em parceria com o Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec).
Emanoel, de 7 anos, é uma das crianças que não tem acesso à educação. Em março de 2020, o menino foi matriculado na escola municipal Teófilo Benedito Ottoni, na zona oeste de São Paulo, mas nunca houve contato com os professores — a irmã, Jéssica Cardoso Pereira, de 26 anos, que tem a guarda do menino, só foi procurada pelo colégio neste ano.
“O Emanoel foi muito afetado, eu acabei ensinando ele a ler e a escrever em casa, ensinei os números, mas vejo muita dificuldade porque não sou professora, não sabia por onde começar”, relata. “A minha preocupação era que ele ficasse para trás.”
Além do Emanoel, Jéssica tem outras duas crianças em casa: a irmã, de 16, também sob sua guarda, e o filho de um ano. Quando a pandemia começou, a estoquista de congelados estava grávida e, após o nascimento do bebê, já na licença-maternidade, passou a ensinar o irmão sozinha.
“Ele nunca teve acesso à professora por nenhuma plataforma”, conta. Quando foi até a escola se informar, verificaram que o código que ela tinha para o Google Classroom acusava “Sala Inexistente”. Neste ano, quando a escola ligou para Jéssica informando que os livros haviam chegado, ela buscou o material para ter uma diretriz no ensino.
A Secretaria Municipal da Educação (SME) informou ao Estadão, em nota, que procurou a família do menino por meio do Núcleo de Apoio e Acompanhamento para a Aprendizagem (NAAPA), mas que o endereço cadastrado estava desatualizado. A busca, no entanto, só foi feita após contato da reportagem com a SME. O endereço que constava no sistema ainda era o da mãe do Samuel.
“A equipe conseguiu contato telefônico com a responsável pelo estudante, que passará a ser acompanhado constantemente pelo NAAPA”, diz o texto. O Núcleo desenvolve ações para prestar suporte e auxiliar os alunos e famílias no aprendizado em casa.