Pesquisa inédita da Fiocruz aponta déficit cognitivo em crianças ianomâmis causado pela contaminação com mercúrio
Pesquisa inédita da Fiocruz: Levantamento utilizou testes de QI e detectou que desnutrição infantil e outros problemas sanitários e sociais também podem estar afetando a saúde dos indígenas
Uma pesquisa da Fiocruz sobre os efeitos de intoxicação por mercúrio entre os ianomâmis identificou graves deficiências cognitivas entre crianças da etnia, por testes de quociente de inteligência (QI) feitos pela primeira vez em indígenas. Os resultados apontam fortes indícios dos efeitos da contaminação por mercúrio, mas a desnutrição infantil e outros problemas sanitários e sociais podem estar relacionados ao problema.
A pesquisa foi feita em nove aldeias Ninan no Alto Rio Mucajaí, na Terra Indígena Yanomami, em Roraima. Todas as 287 amostras de cabelo de indígenas examinadas mostraram exposição ao mercúrio, assim como todos os peixes coletados para o trabalho da Fiocruz feito em outubro de 2022 com o apoio do Instituto Socioambiental (ISA).
A média de valor de QI entre as 58 crianças participantes foi 68 (o índice vai até 120). O melhor resultado do grupo foi de um menino que atingiu um nível considerado mediano.
— Em condições mínimas adequadas, é esperada o QI em torno de 100. As crianças estão com déficit de inteligência ou inteligência limítrofe. É um dano permanente, com consequências para toda a vida. Quando adultas, elas podem ter dificuldades de acesso à formação escolar, e chances reduzidas no mercado de trabalho — alerta o coordenador do grupo de pesquisa Ambiente, Diversidade e Saúde da Fiocruz, Paulo Basta.
Foram feitos dois tipos de testes, um para crianças de 2 a 6 anos e outro para o grupo de 7 a 12 anos. O modelo para os mais novos pediu respostas por estímulos visuais e de lógica, como associar formas geométricas a frutas, diferenciar cores e montar pequenas peças. O segundo exigiu uso de intérpretes e de psicólogos, além de pequenas adaptações como substituir figuras de ursos do exame original por macacos, animais conhecidos dos indígenas.
Basta explica que somente uma pesquisa que acompanhasse todo o desenvolvimento da criança poderia estabelecer as causas exatas do problema. Mas há, como diz, “um indício robusto” dos danos neurológicos pela exposição crônica ao mercúrio. Os piores resultados foram das crianças com maiores níveis de contaminação.
Além do mercúrio, a pesquisa destaca as violações sociais e de acesso à saúde sofridas pelas crianças, desde a gestação: falta de acompanhamento pré-natal, de vacinação (apenas 15,5% das crianças tinham a vacinação completa), de estímulos educacionais e insegurança alimentar.
— É um complexo de fatores de risco que atuam negativamente no estado de saúde das crianças. Elas vivem em vulnerabilidade social enorme — afirma o coordenador do grupo de pesquisa, que explica a dificuldade em reverter a crise. — Os garimpos têm poder de destruição muito maior que nos anos 1980 e a sociedade brasileira sempre esteve de costas para os povos originários. Os ianomâmis são o caso mais simbólico. Mas não são os únicos.
Testes neurológicos
O estudo é o terceiro organizado por Basta a analisar as contaminações por mercúrio entre indígenas. A pesquisa se aperfeiçoou e uma equipe de 22 pessoas realizou avaliações médicas, neurológicas, nutricionais e sociais. Nas avaliações neurológicas em todos os voluntários, inclusive os adultos, os resultados ficaram abaixo da normalidade para mais de 30%.
A média de contaminação identificada na pesquisa, para todos os examinados, foi de 3,7 microgramas de mercúrio por grama de cabelo. Além disso, 81% dos entrevistados relataram ter tido malária ao menos uma vez na vida.
De 2018 a 2022, o desmatamento promovido pelo garimpo na terra ianomâmi, onde vivem quase 30 mil indígenas, aumentou 309%, segundo a Hutukara Associação Yanomami. Além de contaminar os rios, derrubar árvores e afugentar animais — o que compromete as principais fontes de alimentação dos indígenas — os garimpeiros, em muitos casos financiados por organizações criminosas, aliciam jovens, fomentam conflitos internos, sequestram pistas de voos dos polos de saúde e disseminam doenças. Além disso, cresceram as denúncias de violências sexuais.
No ano passado, o governo federal mobilizou uma força-tarefa para retirar os garimpeiros, mas o número de mortes ainda não diminuiu: em 2023, houve 363 mortes. No ano anterior, foram 343. A Secretaria de Saúde Indígena suspeita de que houve subnotificação de mortes em 2022 e outros anos anteriores.
— As nossas crianças estão nascendo doentes — denuncia o vice-presidente da Hutukara, Dário Vitório Kopenawa.
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