Prevenção é remédio para combater a violência infantil no âmbito da família

Veículo: Jornal da USP - SP
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Os dados sobre a violência infantil no Brasil assustam e não é de hoje. No primeiro semestre de 2021, no auge da pandemia de covid-19, a violência contra crianças e adolescentes atingiu o número de 50.098 denúncias no Disque 100 da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, sendo que 81% desse total ocorreu no ambiente familiar da vítima e praticada pela mãe de forma predominante, seguida pelo pai, padrasto ou madrasta e outros familiares do convívio da criança. Trabalhar com prevenção é a melhor resposta para combater a violência contra crianças e adolescentes. É o que defende a professora especialista em Desenvolvimento Infantil, Maria Beatriz Martins Linhares, da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) da USP.

Ela explica que, no contexto da pandemia, com o isolamento e distanciamento social, fechamento das escolas e de muitos serviços de saúde, houve um agravamento da violência no ambiente familiar, tornando as crianças mais vulneráveis e desprotegidas. “Um estudo realizado durante a pandemia com cuidadores de crianças de até 3 anos, das cinco regiões do Brasil, demonstrou que 67% dos pais relataram utilizar algum tipo de prática parental negativa com a criança, tais como gritar, dar um chacoalhão ou umas palmadas, pegar com força pelo braço ou a chamar de burra ou chata”, relata.

A professora Maria Beatriz introduziu há dez anos no Brasil o programa American Psychological Association (ACT- Para Educar Criança em Ambiente Seguro), recomendado pela Organização Mundial da Saúde. “Foi o primeiro estudo randomizado controlado realizado no Brasil, com o apoio da Fapesp, por uma doutoranda da USP, a Elisa Rachel Pisani Altafim, que até hoje trabalha comigo, em parceria, desenvolvendo diversos estudos sobre o ACT. É um programa de prevenção universal da violência contra crianças, fortalecendo a parentalidade com disciplina positiva para melhorar a comunicação dos pais com as crianças, assim como ajudar na regulação emocional e comportamental.”

Atualmente, como um desdobramento importante, o ACT é aplicado em larga escala em 24 cidades do Estado do Ceará, com a coordenação das professoras Maria Beatriz e Elisa Altafim e apoio das Fundações Maria Cecília Souto Vidigal, Bernard Van Leer e Porticus e a parceria do Estado do Ceará e das Prefeituras municipais. “O projeto é muito importante para prevenção de violência no ambiente familiar, para o controle da raiva, que tem uma relação direta com agressividade e as punições, e sua aplicação está baseada cientificamente em vários estudos que desenvolvemos ao longo de dez anos”, explica.

A criança é tanto vítima quanto pode ser testemunha quando há violência entre os parceiros íntimos no ambiente – Foto: Reprodução/Freepik

Maria Beatriz diz que o ACT é uma tecnologia social que tem efetividade e que é preciso estabelecer uma ponte entre pesquisadores e gestores públicos. “Essa aproximação pode ajudar a quebrar o ciclo vicioso intergeracional da violência nas famílias com maior amplitude.” O projeto é uma chamada para a ação com o sentido de trabalhar com formação qualificada, nucleação de equipes locais e implementação com fidelidade e qualidade em sistema público para o atendimento à criança, com o intuito de prevenir a violência por meio de uma parentalidade positiva”, afirma. Dessa forma, as evidências científicas podem ser transferidas para a prática em larga escala com sustentabilidade. A implementação do ACT no Ceará pretende ser um modelo a ser desdobrado para outros Estados do País. Para isso, os dados sobre os índices de violência contra criança no ambiente familiar após a atuação do ACT estão sendo finalizados para servirem de referência.

A violência contra a criança

A professora diz que a violência contra crianças é um grave fator de risco ao seu desenvolvimento infantil e pode ocorrer tanto em ambientes públicos ou privados como no ambiente familiar e que, nesse contexto, é bastante preocupante, porque envolve várias formas como: violência sexual, abuso físico, violência psicológica, ameaças com gritos, negligência e abandono. Uma série de condições que violam a integridade psicológica da criança. “Além desses fatores, a criança é tanto vítima quanto pode ser testemunha quando se tem violência entre os parceiros íntimos no ambiente. Esses múltiplos fatores de risco ameaçam o seu comportamento, com impacto negativo no seu desenvolvimento a curto, médio e a longo prazo.”

Maria Beatriz lembra que o Fórum Brasileiro de Segurança Pública alerta que as violências contra as crianças podem levar aos principais crimes previstos em leis, tais como: mortes violentas intencionais, maus-tratos, abandono, lesão corporal e dolosa, pornografia, exploração sexual, estupro. “O que nos mostra que nós temos que atentar para a questão da violência de forma a prevenir para evitar desfechos mais graves.”

Segundo levantamento da Unicef, braço da ONU que trabalha na garantia de direitos de crianças e adolescentes no mundo, cerca de 19 crianças morrem por dia vítimas da violência só no Brasil. Entre 2016 e 2020, foram mortas 35 mil crianças no País, uma média de 7 mil por ano. Segundo a professora Maria Beatriz, “entre 2017 e 2020, segundo a Unicef, 180 mil crianças sofreram algum tipo de violência sexual no País, uma média de 45 mil por ano”.

A professora lembra que existem várias leis que protegem a criança, como a Constituição Federal, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), o Marco Legal da Primeira Infância (Lei nº 13.257/2016), a Lei do Menino Bernardo ou Lei da Palmada (Lei nº 13.010), Lei do Henry Borel (nº 14.344), entre outras. “Mas é preciso que as leis sejam transformadas em ações efetivas que permitam lidar com a questão da violência frontalmente, criando sistemas de prevenção com foco na primeira infância em rede intersetorial na saúde, educação, proteção social e área jurídica. A violência é possível de ser prevenida contra a criança, especialmente com relação ao fortalecimento da parentalidade positiva, não violenta.”