Proibição de celular nas escolas vai exigir cuidados com crianças e adolescentes já viciadas em tecnologia

Veículo: O Globo - RJ
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Fernanda (nome fictício) resistiu por um tempo, mas acabou comprando um tablet para o filho quando ele tinha 5 anos. O menino havia passado por uma pequena cirurgia e não poderia sair da cama por algumas semanas. A mãe determinou algumas regras: tempo e conteúdo seriam limitados e controlados por ela. Ele descobriu o Roblox, uma plataforma de jogos aparentemente inofensiva. Agora, dois anos depois, a criança sofre do medo de ficar longe de dispositivos móveis. O transtorno ganhou um nome em inglês: no mobile phobia, que foi abreviado e aportuguesado para nomofobia. Ele está viciado no dispositivo — um problema que, em breve, pode se disseminar em escolas brasileiras, onde celulares e tablets estão barrados.

— Tem sido um caos a nossa vida. Ele fica muito nervoso quando eu tiro o tablet. Grita, começa a xingar. Ele não era assim. Diz que me odeia, que sou uma péssima mãe — conta Fernanda, que também cuida sozinha de uma menina de 2 anos. — Está todo mundo da escola dele no mesmo barco. Alguns pais não estão se importando com isso. Mas outros estão desesperados. Eu estou nesse segundo grupo.

A proibição de celulares nas escolas, determinada em lei sancionada em janeiro pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, é amplamente defendida por professores e especialistas em educação e em saúde mental. Mas vários alertam para a provável consequência de que pais e educadores precisem lidar com sinais de nomofobia em uma boa parte dos estudantes.

— É muito difícil essa separação. Vai haver crianças e adolescentes que conseguirão respeitar. Mas alguns já têm uma questão patológica desenvolvida. É uma dependência absurda. As crianças surtam — alerta Luisa Sabino, psicóloga que pesquisa e ensina sobre dependências digitais.

Nesses primeiros dias de volta às aulas, algumas escolas já têm registrado reclamações de alunos. Uma petição chegou a ser criada por Luís Tonelotto Rodrigues, dono do perfil Olha Professor no TikTok, pedindo o fim da medida. Tonelotto tem 4 milhões de seguidores na plataforma, e a petição já conta com 1,5 milhão de assinaturas. Um relatório da empresa de marketing digital AM4, do empresário Marcos Carvalho, mostra que, em janeiro, explodiram as mensagens de adolescentes no X, no TikTok e no Instagram contestando a proibição. O monitoramento mostrou que, entre jovens de 17 anos, as menções negativas marcaram 79%. As positivas ficaram em 10%, e as neutras, em 11%.

Mas a nomofobia é mais grave do que o inconformismo, diferenciam especialistas. É uma dependência patológica da tecnologia, não apenas o uso indiscriminado todos os dias. Para configurar a doença, é preciso que a pessoa também esteja relatando angústia, ansiedade, nervosismo e desespero, entre outras aflições — o site do GLOBO oferece um teste desenvolvido pelo Instituto Delete, do Instituto de Psiquiatria da UFRJ, que indica se há com o que se preocupar.

— É preciso perceber quando surge prejuízo causado pela tecnologia na área social, familiar, acadêmica ou profissional. Por exemplo, quando, por causa da tecnologia, a pessoa é reprovada de ano porque não entregou trabalhos ou não dá atenção para o parceiro, vira a noite e não rende no dia seguinte — diz a psicóloga Anna Lucia King, uma das fundadoras do Delete.

Na avaliação de Luisa, os professores precisam passar por algum tipo de formação para lidar com esses problemas. A incidência da nomofobia na população ainda é incerta. No entanto, a especialista afirma que os efeitos são cada vez mais visíveis, especialmente na Geração Alpha (nascidos a partir de 2010), e os casos aumentam nos consultórios.

— Os professores precisam entender que uma crise não é uma birra, mas um surto. E precisam saber como manejar isso — aconselha. — Isso é um problema para os pais também. A criança vai querer aumentar o uso em casa.

Transtorno associado

Anna King diz que a nomofobia tem tratamento. Em geral, explica, o problema está associado a algum “transtorno de base”. Ou seja, uma outra doença psíquica manifestada através da tecnologia. As mais comuns são depressão, ansiedade e compulsões, que precisam ser tratadas primeiro. O caminho, no entanto, não costuma ser fácil. Por isso, ela recomenda que os pais tentem prevenir que seus filhos passem por isso.

— Os adultos precisam dar limites. Como não receberam educação digital, não sabem orientar. Eles precisam aprender, e têm de determinar as regras para que os adolescentes usem só quando deixarem — orienta.

Luisa diz que, em geral, os pais chegam ao consultório apontando os problemas do filho, mas não percebem que também têm dificuldades com a tecnologia.

— Quando a gente vai entender o que se passa com aquela família, (vê que) os pais são superdependentes de tecnologia. Não só para o trabalho, mas em seus momentos de lazer. A gente começa o trabalho com conscientização. As crianças reproduzem o que é vivido em casa no seu cotidiano — observa a psicóloga.

No Rio, o Instituto Delete oferece avaliação médica e atendimento psicológico gratuito na Urca, na Zona Sul. O atendimento é feito todas as sextas-feiras, das 8h às 12h. Para outras informações, o e-mail é contato@institutodelete.com. Em São Paulo, é possível buscar ajuda gratuita no Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). O telefone para agendamento é (11) 99645-8038.

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