Projeto de leitura para bebês vai muito além da contação de histórias
Projeto de leitura para bebês: Professora da educação infantil incentiva o manuseio dos livros, a brincadeira e a interação dos pequenos em um ambiente acolhedor para estimular a experiência leitora na primeira infância
O pequeno Vinícius, de 1 ano e 4 meses, escolheu um livro da prateleira e começou a folheá-lo. Ao notar o interesse do amiguinho, Marina, de 1 ano e 6 meses, sentiu-se convidada a participar desse momento. Juntos, fizeram suas observações e dialogaram pelas múltiplas linguagens. Entre as palavras e os balbucios, brincaram e interagiram, construindo narrativas poéticas e crianceiras.
A cena acima (com nomes fictícios para preservar a identidade das crianças) é corriqueira na minha turma, formada por meninos e meninas entre 1 ano e 3 meses e 2 anos e 2 meses na escola Aubrick Bilíngue Multicultural, em São Paulo. Na sala, a prateleira com diversos livros está sempre ao alcance dos pequenos. Ouvir as onomatopeias, as rimas, os ritmos e os sons, assim como o brincar com os significados das palavras, dando-lhes outras dimensões, é uma expertise das crianças. Elas possuem gramáticas próprias, que dão significado à vida, diferentemente de nós, adultos.
Então, que tal deixar nossa meninice nos tocar nas experiências cotidianas que temos com as crianças? Essa é a proposta do projeto “Construindo poéticas literárias no cotidiano da educação infantil”, que realizei em 2022, com uma turma de 13 crianças.
Os momentos de leituras compartilhadas e individuais fazem parte da nossa rotina. Geralmente, ao lado da prateleira de livros, coloco uma colcha de retalhos no chão, com intuito de tornar o ambiente aconchegante. Em cima dessa colcha, distribuo alguns livros de diferentes formas e materiais: livros de pano, retangulares, quadrados, alguns no estilo “pop-up” (que formam figuras e paisagens tridimensionais ao abrir a página), cartonados (de capa dura e páginas resistentes), com diferentes narrativas e imagens. Alguns em português, outros em inglês. E dois deles estão entre os prediletos das crianças: “Bruxa, Bruxa venha à minha festa”, de Arden Druce (1929-2015), e “Uma lagarta muito comilona”, de Eric Carle (1929-2021).
Também ficam disponíveis para manuseio cartões com imagens de músicas que cantamos nas rodas, tarjetas com os nomes e fotos da turma, pandeiros e chocalhos utilizados para as experimentações sonoras e rítmicas. Com eles, algumas crianças revivem os momentos de roda: cantam, dançam, gesticulam e narram as canções favoritas, fazendo isso no seu próprio ritmo e tempo. Além desses materiais, brinquedos e outros itens, como pedaços de madeira, pequenos recortes de tecidos e elementos da natureza também ficam ao alcance do grupo.
Assim que chegam à sala de referência, as crianças são recebidas com contextos investigativos e de brincadeiras. Em pequenos grupos (de três ou quatro) ou duplas, são convidadas a brincar, interagindo com os objetos, com os livros e entre os pares também. Meu papel é mediar essas vivências, sentar junto, conversar e acolher. As crianças bem pequenas estão aprendendo a se reconhecer como sujeitos e, gradativamente, como grupo. Sabemos que nesta fase elas se expressam pelas múltiplas linguagens: muitas recorrem ao choro para sinalizar que necessitam de ajuda. Se um colega pega o livro que está lendo, há choro também! Precisamos estar atentas às necessidades dos pequenos, principalmente àqueles que estão aprendendo a verbalizar as sensações, sentimentos e frustrações.
Elas aprendem linguagens a partir das brincadeiras simbólicas, do encontro com outras crianças e adultos, das contações de histórias. E as vivências com práticas literárias abrem um mundo de possibilidades.
Como mediar a leitura para os bebês?
Acredito que as nossas mediações, a maneira como organizamos o espaço e disponibilizamos os materiais, podem ampliar repertórios e possibilidades das vivências e expressões das crianças com o mundo. Elas criam, recriam, inventam, reinventam, encontram e reencontram os processos de maneira intensa conectando todos os saberes.
A literatura deve ser uma experiência de múltiplas linguagens, vivida com diversas entonações, brincando com as vozes que compõem as narrativas e as histórias. Assim como os textos devem ser narrados, as imagens também revelam detalhes, minúcias e histórias e, por isso, um livro deve ser lido de maneira multimodal, ou seja: de maneira que o ritmo, o tom e o movimento das histórias sejam acompanhados.
Por vezes, muitas crianças não estão sentadas na roda, mas estão ouvindo a história enquanto brincam ou estão no colo. Os pequenos e pequenas leem com o corpo todo, sentem os gostos dos livros quando os colocam na boca, verificando o tamanho quando tentam abri-lo em pé. Assim, vão descobrindo modos de se relacionarem com o objeto-livro. Como educadora, vou acolhendo as descobertas, mediando e interagindo, auxiliando também o desenvolvimento do comportamento leitor.
É importante convidá-los a participar, manipular e experienciar narrativas que acolhem e constroem vínculos afetivos com o mundo literário oral e escrito. Deixar prateleiras com livros à disposição, para que possam manusear os livros e explorá-los livremente, é uma alternativa que respeita as escolhas e potências das crianças.
Também sugiro o apoio de diferentes recursos gráfico-visuais que possam contribuir com as investigações, como:
– Cartões de personagens dos histórias para que as crianças possam contá-las a seu modo;
– Materiais e materialidades que possibilitem as expressões das multiplicidades de linguagens como instrumentos musicais;
– Riscadores de diferentes formatos;
– Materiais de largo alcance;
– Objetos que façam parte do cotidiano, como por exemplo: teclados de computadores, telas, telefones, máquinas fotográficas, blocos de notas, calculadoras… enfim, recursos que possibilitem o simbólico.
Resultados
Ao longo das vivências do semestre, o grupo construiu momentos significativos na ampliação e construção de repertório cultural, linguístico, imagético e estético. Após algumas semanas, notei que a turma já estava se familiarizando com algumas histórias e, de maneira autônoma, buscava pelos livros-referências, como “Uma lagarta muito comilona”. Sentavam-se no chão, folheavam, reproduziam fragmentos das narrativas, balbuciavam referindo-se às frutas, ou até as características da lagarta.
Para quem não conhece o livro, vale assistir a contação do canal “Fafá conta histórias”, no YouTube.
Sabemos que crianças aprendem por meio de brincadeiras, assim como nas relações e interações que vivenciam com o mundo que as cercam. Refletir sobre essas interações é urgente no cotidiano da educação infantil. O rigor que devemos ter ao fazer escolhas de materiais, bem como a nossa observação e os registros feitos por meio de fotografias, vídeos, anotações e pautas são caminhos essenciais para que possamos ter elementos que nos conduzem a boas escolhas que façam sentido para a turma.
Olhar para as minúcias é um convite cotidiano que fazemos – e que as crianças da educação infantil também nos fazem de modo sútil, poético e generoso. Acredito que nosso propósito é continuar essa jornada que partilhamos juntos.
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