Racismo na primeira infância eleva risco de doenças crônicas na vida adulta

Veículo: Alma Preta Jornalismo
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Rejeição da própria imagem, baixa autoestima, dificuldades de socialização, inibição comportamental, ansiedade, fobia e estresse tóxico — esses são alguns dos impactos do racismo na vida de crianças negras desde os primeiros anos de vida.  Elas, desde a primeira infância, carregam o fardo de uma discriminação que limita o desenvolvimento e mina a autoestima. São as cicatrizes invisíveis que marcam uma geração e produz efeitos na vida adulta.

Um estudo do Center on Developing Child da Universidade de Harvard ajuda a explicar os efeitos do racismo no desenvolvimento infantil, que acarreta no aumento dos níveis de estresse, que pode elevar as chances de doenças crônicas na vida adulta.

A publicação aponta que o estresse crônico causado pela discriminação racial diária e pelo racismo sistêmico ativa a resposta ao estresse no organismo, resultando em um desgaste que afeta o desenvolvimento cerebral e outros sistemas biológicos.

Ainda segundo o levantamento, as consequências são alarmantes, que vão desde problemas de saúde crônicos, dificuldades de aprendizado, problemas comportamentais a impactos na saúde mental e física que se estendem por toda a vida.

Para a pesquisa, o racismo se manifesta em diversas esferas da vida, desde o acesso desigual a serviços de saúde e educação de qualidade até a falta de oportunidades econômicas e a dificuldade na acumulação de riqueza.

Além disso, a saúde mental dos pais e cuidadores também é afetada pelo estresse da discriminação, impactando negativamente seus comportamentos de cuidado e, consequentemente, o desenvolvimento das crianças sob seus cuidados.

Traumas e situação de pobreza devido ao racismo 

No Brasil, a população negra enfrenta desigualdades persistentes em diversos aspectos da vida. Seja no mercado de trabalho, na renda, na educação ou na participação política, os indicadores para esse grupo são significativamente inferiores em comparação aos da população branca.

A violência também atinge de forma desproporcional este grupo populacional e apresenta maiores índices de vitimização. Na área da saúde, o cenário não é diferente — negros são mais suscetíveis a mortalidade materna, acesso a exames pré-natais e doenças infectocontagiosas, que chegam a ser mais severas. Os dados são do boletim Saúde da População Negra, divulgados em 2023.

Já o documento “Racismo, Educação Infantil e Desenvolvimento na Primeira Infância”, publicado pelo Núcleo Ciência pela Infância (NCPI), descreve os efeitos do racismo no desenvolvimento infantil, que aparecem na rejeição da própria imagem e impacto na autoestima, construção de uma identidade racial desvalorizada, problemas de socialização e inibição de comportamento, estresse tóxico, ansiedade, dificuldade de confiar em si, entre outras implicações.

“O racismo é uma das variáveis que compõem as chamadas Experiências Adversas na Infância. A experiência de ser criança negra no Brasil ocorre na adversidade do racismo brasileiro e essas crianças podem enfrentar maior exposição ao estresse tóxico por traumas e a situações de pobreza devido ao racismo”, acrescenta a publicação.

Manifestações do racismo na primeira infância 

A professora doutora em educação e diversidade étnico-racial, Lucimar Rosa Dias, coordenadora do grupo de estudos ErêYá e membra do comitê científico do Núcleo Ciência pela Infância (NCPI), explica que o racismo se manifesta de diversas maneiras na primeira infância.

“As mães, as pessoas que são responsáveis pelos cuidados das crianças na primeira infância, muitas delas são afetadas pelo racismo estrutural da sociedade brasileira. Então eles têm serviços precarizados, moram em lugares muito precários em termos de infraestrutura e isso afeta o desenvolvimento infantil”, afirma.

A especialista alerta que fatores como a desigualdade social e a falta de infraestrutura afetam desproporcionalmente crianças negras, indígenas e de comunidades tradicionais. Ela ressalta ainda que as mudanças climáticas extremas também impactam essas populações, evidenciando a interconexão entre racismo e questões ambientais.

Dias aponta que o racismo se manifesta de forma interpessoal, como na escola, o qual pesquisas mostram que crianças negras recebem menos atenção e têm suas necessidades individuais ignoradas.

Crianças negras podem rejeitar cor de pele e cabelo 

De acordo com a professora, o racismo também afeta a formação da identidade de crianças negras, porque elas, desde muito cedo, podem rejeitar sua cor de pele e cabelo, buscando se identificar com padrões brancos. Essa negação de sua própria identidade e cultura impacta negativamente sua autoestima e a forma como se relacionam com o mundo.

“Pesquisas mostram que crianças que não possuem um repertório positivo sobre sua identidade negra tendem a se retratar com pessoas brancas, o que constitui uma forma de violência significativa. Isso reflete uma busca dolorosa por entender quem são e como se constituem, além de contribuir para a negação de sua cultura negra”, destaca Dias.

Ela cita o exemplo de uma criança que pertence a religiões de matrizes africanas e pode não se sentir à vontade para compartilhar essa informação na escola devido ao preconceito e ao racismo religioso. Essa situação impacta negativamente a relação da criança com sua própria identidade e com suas potencialidades.

“Quando uma criança não sente quem é e deseja ser outra pessoa, isso impacta profundamente suas interações e a forma como ela se posiciona diante do novo e do inesperado. Essa criança pode se tornar menos ativa e hesitante, não por falta de coragem, mas porque não acredita em suas próprias possibilidades”, pondera.

Estratégias de combate ao racismo 

Dias defende que embora o impacto possa não afetar todas as crianças, a situação é preocupante. “O Movimento Negro e diversas organizações na sociedade brasileira têm feito um trabalho importante para enfrentar essas questões e investir na construção de uma identidade positiva”.

Ela acredita que é necessário um engajamento mais amplo em políticas antirracistas, especialmente na primeira infância, para evitar que as futuras gerações continuem a sofrer.

“A sociedade brasileira deve revisar profundamente como percebe a identidade negra e trabalhar para implementar mudanças estruturais. Estamos vivendo um momento significativo, especialmente após a cobertura midiática do caso George Floyd nos Estados Unidos, que levou a uma maior visibilidade e positividade da representação negra na mídia”, pontua.

A professora ainda afirma que essa mudança tem influenciado positivamente a percepção das crianças negras sobre si mesmas. “Observamos que, atualmente, crianças pequenas, de quatro a cinco anos, já demonstram discursos de resistência e empoderamento contra o racismo, o que é um reflexo do trabalho efetivo do Movimento Negro e de outras organizações que destacam a potência e o valor da pessoa negra”, acrescenta.

No entanto, acredita ser crucial que as crianças negras em situações de vulnerabilidade social recebam a atenção necessária por meio de políticas públicas que valorizem e reconheçam sua importância.

Para a especialista, a intervenção necessária deve ocorrer em duas frentes: primeiro, é fundamental reduzir a extrema desigualdade no Brasil, que afeta desproporcionalmente crianças negras, indígenas e quilombolas. Segundo, é essencial criar e manter espaços amigáveis e antirracistas em diversos contextos, como educação, saúde e assistência social.

“Isso envolve formar profissionais de educação, saúde e assistência social com uma perspectiva antirracista, garantindo que eles estejam preparados para enfrentar e combater o racismo. As instituições que atendem crianças e bebês devem adotar práticas e materiais que reflitam uma abordagem antirracista, desde livros e brinquedos até metodologias pedagógicas”, frisa.

A proteção das crianças negras requer um compromisso coletivo, que vai além das ações individuais e deve ser incorporado nas políticas públicas em níveis municipal, estadual e federal.

“Programas de alfabetização e outras iniciativas estruturais devem considerar a dimensão antirracista em sua concepção e implementação. Caso contrário, continuaremos a enfrentar uma proteção inadequada e pontual, sem tratar as questões estruturais de forma eficaz”, finaliza a professora.

 

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