Relatório aponta falhas no sistema socioeducativo do Ceará
Superlotação em dormitórios, adolescentes feridos, ausência de encaminhamento para cuidados médicos, despreparo das equipes dos centros educacionais. Situações denunciadas por entidades de defesa dos direitos de crianças e adolescentes no sistema socioeducativo do Ceará foram constatadas pelo Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura.
Quatro peritos do mecanismo, que é vinculado à Secretaria de Direitos Humanos (SDH), visitaram cinco unidades de internação no estado em dezembro de 2015. O relatório completo das visitas está publicado no site da SDH.
Condições insalubres
O Centro Educacional São Miguel foi uma das unidades visitadas. Em agosto, 65 adolescentes fugiram do local após uma rebelião. Os peritos verificaram que o ambiente dos alojamentos é “quase insuportável”, com infiltrações, esgoto entupido, muita sujeira e circulação de ar inexistente. Também praticamente não havia atividades para os adolescentes, fazendo com que eles ficassem o dia todo dentro dos dormitórios.
“A falta de atividades, as condições completamente insalubres, aliadas a falta de preparo dos funcionários (…) transformam esse espaço em um local propício à prática de torturas e de possíveis outras rebeliões. Além disso, por si só, essas condições podem ser consideradas desumanas e condicionantes de maus tratos”, diz o relatório.
A mesma situação foi vista no Centro Educacional Patativa do Assaré, com o agravante da superlotação: o espaço tem capacidade para abrigar 60 adolescentes, mas, no dia da visita do mecanismo, tinha 176. “O ato de trancafiar dez adolescentes, 24 horas por dia, em um local onde deveriam estar apenas dois é uma prática desumana, cruel, degradante e pode ser considerado tortura, seja física ou psicológica”, avalia o documento.
Nas demais unidades visitadas, os peritos ouviram relatos e viram marcas de violência nos corpos dos adolescentes, que alegam serem espancados por instrutores e pela polícia. No Centro Educacional Dom Bosco, por exemplo, havia um interno com “um grande corte no pé sem os curativos devidos, sem medicamento, seriamente infeccionado, sem a dieta alimentar recomendável, sob o risco de gangrenar”. Conforme o relatório, a direção da unidade sabia do fato, mas não tomou providências imediatas.
Tranca
Os peritos também viram no Dom Bosco a chamada “tranca”, espaço onde os adolescentes são colocados como forma de castigo. Conforme o relatório, a ala estava cheia de fuligem, resultado de uma rebelião, comprometendo a permanência no local. Mesmo assim, 12 internos eram mantidos lá há sete dias, sem poder sair e sem direito a falar com seus familiares, sem tomar banho e escovar os dentes e sem colchões.
“Além da ilegalidade de existir sanção de isolamento no cumprimento de medida socioeducativa de internação, as condições físicas e de salubridade da ala eram incompatíveis com quaisquer parâmetros legais nacionais ou internacionais”, informa o relatório.
No final do documento de 45 páginas, o mecanismo considera que o Ceará possui uma “frágil estrutura administrativa” para executar a política de internação para adolescentes em conflito com a lei. “Como medida de contenção de ‘rebelião’, são praticadas diversas violações de direitos e violências físicas, que não são apuradas, investigadas ou processadas.”
Recomendações
O relatório lista ainda uma série de recomendações, direcionadas tanto ao governo do estado como a outros órgãos, como Tribunal de Justiça, Ministério Público e Defensoria Pública. Entre elas, está a adoção imediata de prontuários, protocolos escritos e a atualização dos dados dos adolescentes, a criação de um canal de diálogo com as famílias e com a sociedade civil, nos moldes de uma ouvidoria autônoma, a criação imediata de mutirão da revisão das medidas socioeducativas de internação e a verificação do fechamento das “trancas”.
De acordo com a assessoria de comunicação do Governo do Estado, o Conselho Estadual de Defesa dos Direitos Humanos (CEDDH), colegiado vinculado à Secretaria da Justiça do Ceará (Sejus), recebeu o relatório do MNPCT e definiu em reunião feita na última segunda-feira (1ª) a criação de uma comissão, em conjunto com o Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente (Cedca), para monitorar as recomendações constantes do documento.