Saúde mental de um quarto dos jovens piorou na pandemia, mostra pesquisa da USP

Veículo: O Globo - RJ
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Uma semana antes do início da pandemia, em março de 2020, a rotina de Nívia Radigia Rodrigues Chavier era a seguinte: pela manhã, saía cedo para a aula; à tarde, trabalhava no jornal Maré de Notícias, do Complexo da Maré, Zona Norte do Rio, onde mora; à noite, corria para o curso pré-vestibular. A garota de 17 anos também tinha os sábados tomados pelo curso técnico de mecânica. De um dia para o outro, como ela diz, não havia mais nada.

Nívia completou seus 18 anos imersa em ansiedade e tristeza, longe dos amigos e dividindo o quarto com as duas irmãs mais novas. Numa idade em que buscam independência emocional dos pais e que precisam dos amigos para a construção da identidade, jovens como ela viveram o oposto na pandemia: isolados em casa, ficaram perto dos pais, longe dos colegas.

Uma pesquisa do Instituto de Psiquiatria da USP, encerrada no mês passado, mostrou até agora que, num universo de quase 7 mil crianças e adolescentes (com idade entre 5 e 17 anos), 26% apresentam sintomas clínicos de ansiedade e depressão, ou seja, precisam de atendimento especializado.

— Sabia que 2020 seria um ano sofrido, não pela pandemia, mas pelo meu esforço. Ia fazer vestibular, minha vida era movimentada. De repente, tudo parou — lembra Nívia.

Os pais perderam o emprego. A mãe conseguiu o auxílio emergencial, mas o padrasto, não. Após a ajuda do governo acabar, o salário mínimo que a jovem recebia por meio do projeto Jovem Aprendiz passou a ser a única renda da casa.

— Via várias pessoas morrendo, ouvia as notícias, me sentia mais mal e tentava anular meu sentimento de frustração. Quando sofria, me sentia egoísta por conta de todas as mortes que estavam acontecendo.

Foram semanas sem vontade de sair da cama. Depois, veio a ansiedade:

— A incerteza sobre o fim me deixava ansiosa. Eu achava que em 15 dias ia voltar ao normal, mas não. Tudo era adiado de novo. Aí, de repente, voltava a expectativa de que, no mês seguinte, ia melhorar. E não. Nunca melhorava.

A internet instável não ajudava nas aulas à distância e, a certa altura, seu salário mínimo não deu conta do sustento da família. Buscou abrigo na casa dos avós, para que as irmãs continuassem a ser alimentadas da forma necessária na casa dos pais.

No contexto de Nívia e de muitos adolescentes de baixa renda, as taxas de jovens com problemas de ansiedade e depressão são três vezes maiores que as apresentadas pela USP, segundo os pesquisadores.

Renda e mais dificuldades

Um grupo da própria Maré, onde vive a garota, tentou mapear por lá a saúde mental dos adolescentes. Num projeto viabilizado pelo Unicef em parceria com a ONG Luta pela Paz, jovens conduziram uma pesquisa entre 323 moradores — a maioria com idade entre 19 e 25 anos, 64% negros.

Também feito sob a forma de autodeclaração, como a pesquisa da USP, o estudo perguntou aos jovens qual vinha sendo seu principal desafio durante a pandemia: para 22%, a preocupação era a ansiedade; para 21%, a situação financeira complicada.

Na pesquisa da USP, não há perguntas específicas sobre dificuldades econômicas. Os resultados prévios do trabalho, que teve início em meio à pandemia, em junho do ano passado, indicam que 13% dos jovens se sentem solitários, 23% dormem depois de uma hora da manhã, 48% não se exercitam e 37% estão sem uma rotina definida.

Para Guilherme Polanczyk, professor de Psiquiatria da Infância e Adolescência da USP e coordenador da pesquisa, um dos pontos que mais chamam a atenção é justamente essa “variabilidade dos efeitos da pandemia” entre crianças e adolescentes.

— O isolamento pode vir acompanhado de diferentes questões. Há as crianças que perderam familiares, ou mesmo o pai ou a mãe, há as que têm uma situação financeira que as protege e, às vezes, estão até gostando de ficar em casa. Mas, de modo geral, o que a gente percebe é que a renda e os níveis socioeconômicos são variáveis importantes. Os pobres, afinal, morrem mais, e o impacto disso na saúde mental dos jovens de baixa renda é enorme — explica Polanczyk.

Novas responsabilidades

Doutora em saúde pública, a psicóloga Melissa Oliveira lembra que, em geral, os adolescentes de baixa renda não tiveram direito ao isolamento. Muitos precisaram “assumir responsabilidades” e, ela completa, deixaram de ser alvo da proteção dos adultos para assumir a linha de frente do cuidado da família.

— Isso é muito comum na família brasileira: a mãe solo, o abandono parental ou a figura paterna ausente — diz a psicóloga, que lembra as responsabilidades assumidas por boa parte dos que estão nesta faixa etária. — Para muitos jovens, adolescer significa se tornar responsável pelos irmãos menores, pela casa. Não é que devemos desconsiderar o sofrimento do adolescente que conseguiu acessar o direito de ficar em isolamento em casa com a família. Mas é preciso pensar em políticas públicas, por exemplo, para as meninas adolescentes que tiveram filhos, para os jovens que tiveram que trabalhar ou que têm pouco acesso à internet pois compartilham um mesmo telefone com os pais e irmãos. Não há um impacto homogêneo na saúde mental dos jovens.

O que os adolescentes de modo geral compartilham são processos como as inaugurações (“O primeiro beijo, a primeira transa”, exemplifica a psicóloga), a construção da identidade e os questionamentos. Numa fase em que não se identificam mais com o universo das crianças e tampouco são considerados adultos, os adolescentes buscam na coletividade referências para forjar uma identidade.

— O questionamento é uma marca da adolescência. Quando a gente questiona as figuras de referência, precisa de outras figuras. Para isso, o jovem cola nos amigos. A figura de referência deixa de ser a mãe, por exemplo, e passa a ser uma amiga da escola — diz Oliveira. — Estar em coletividade é algo esperado porque faz parte da construção da identidade, de novos recursos individuais e novas referências.

Com o isolamento, esse processo é interrompido ou, no mínimo, dificultado. A falta do grupo e, em consequência, o sentimento de solidão são fatores de risco importantes para a depressão. Guilherme Polanczyk explica que os “adolescentes têm uma noção de tempo ainda em desenvolvimento”:

— Eles viveram 15, 16 anos, e a noção de que ainda há muito tempo pela frente é pouco desenvolvida. As coisas são muito imediatas, e muitos sofrem porque estão vivendo o 2º ou o 3º ano do Ensino Médio, privados das festas, das viagens, e com a sensação de que estão perdendo muito. De fato, estão perdendo, mas têm tempo pela frente.

Segundo o professor da USP, a falta de socialização nos anos de desenvolvimento tem “grande impacto sobre a identidade”, e os jovens “vão terminar essa pandemia com falhas maiores do que teriam na formação da identidade”.

— Todas as questões de autonomia e desenvolvimento do senso de si estão prejudicadas — alerta o especialista.

Como os pesquisadores não podem ir às ruas e residências para realizar as entrevistas pessoalmente, o estudo da USP foi feito por autodeclaração, o que pode levar à subnotificação, já que foram os pais que preencheram a pesquisa — “e os jovens não contam tudo para os pais”, lembra Polanczyk.

— Na pandemia, os pais estão também muito ansiosos e com questões próprias que criam mais dificuldades para lidar com as questões dos filhos. Existe uma menor disponibilidade do suporte familiar e dos amigos. Mas é fundamental criar espaços de diálogo — completa.

Temas deste texto: Comportamento - Cultura - Saúde