98% dos acusados de sequestro internacional de crianças são mães e maioria fugiu após violência do pai, diz ONG

Veículo: Globo.com - BR
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sequestro internacional de crianças
Foto Gerd Altmann – Pixabay

Sequestro internacional de crianças: relatório da Revibra obtido pela GloboNews analisou 278 casos de pedidos de ajuda envolvendo a Convenção de Haia entre novembro de 2019 e dezembro de 2022

Um levantamento da organização internacional Revibra, que acolhe brasileiras migrantes na Europa, mostrou que quase 9 em cada 10 mulheres processadas por sequestro internacional dos filhos com base na Convenção de Haia foram vítimas de violência doméstica.

O relatório obtido pela GloboNews analisa 278 casos de pedidos de ajuda envolvendo a convenção, entre novembro de 2019 e dezembro de 2022. De todos os atendimentos:

  • 98% são de mulheres denunciadas pelos companheiros ou ex-companheiros de sequestro internacional
  • 88,1% tinham relatos de violência doméstica cometidos contra a mãe.
Sequestro internacional de crianças

Desde 2000, o Brasil é signatário da Convenção de Haia sobre os aspectos civis do sequestro internacional de crianças. O tratado internacional foi elaborado há mais de 40 anos e especifica em quais condições crianças podem sair do seu país de residência habitual sem o pai ou sem a mãe. Com base nesse pacto, quando não há acordo entre os genitores sobre essa saída, um dos lados pode acionar as autoridades alegando sequestro.

Como toda regra, o tratado tem exceções. Uma delas desobriga autoridades a devolver crianças quando há risco de serem expostas a perigos de ordem física, psíquica ou de ficarem em situação intolerável.

Mas, segundo a organização internacional Revibra, os riscos previstos na exceção não têm sido levados em conta pelas autoridades.

Ao denunciar o abuso, essa vítima, ao invés de ser protegida, perde sua credibilidade. Não acreditam que seja vítima, não recebe proteção, é criminalizada, pode perder o visto. O visto normalmente está ligado ao pai.
— Juliana Wahlgren, diretora-jurídica da ONG

Segundo ela, “é esta realidade chocante que faz com que ela entenda que a Justiça não vai tratá-la como cidadã do país” e, por isso, “muitas preferem arriscar e voltar pro Brasil”.

Os atendimentos feitos pela Revibra no período abrangem consultas de brasileiras migrantes que estão buscando informações sobre como voltar ao Brasil ou migrar para outro país com seus filhos, ou de pessoas que já estão enfrentando o pedido de retorno sendo perfiladas como sequestradoras.

Disputas de guarda

A produtora Denise Fait é brasileira e perdeu a guarda do filho, hoje com 9 anos, com base na Convenção de Haia. Ela está longe do garoto há um ano.

O ex-companheiro dela, um homem alemão que mora no Chile, a acusou de sequestro internacional depois que o menino veio visitá-la no Brasil e disse que queria morar com a mãe.

Denise contou à GloboNews que foi firmado um acordo de guarda compartilhada quando o casal se separou, e que ela aceitou que o filho passasse um período com o pai nos Estados Unidos. Mas, ainda segundo ela, em determinado momento a criança acabou sendo levada para o Chile — sem autorização.

Quando voltou ao Brasil, Denise diz que o filho pediu para não morar mais com o pai. Ela, então, decidiu manter a criança no país e o pai alemão acionou a Convenção de Haia. No passado, ele conseguiu que menino voltasse a viver com ele no Chile. A mãe afirma que foi um processo doloroso, que custou muito dinheiro e que a criança não foi ouvida.

Meu filho falou: ‘eu quero ficar, eu não quero’. Por que que eu tenho que ir? Por favor, mãe, não me manda de volta. Como é que você, mãe, vai fazer? É cruel. Então, foi isso que aconteceu, uma luta contra o sistema. Às vezes eu fico um mês sem falar com ele.

Uma outra mãe brasileira ouvida pela GloboNews que não quis se identificar também brigou na Justiça pela guarda do filho após sofrer violência física e ameaças de morte do ex-companheiro belga antes, durante e depois da gravidez.

Em 2015, ela foi acusada pelo pai do garoto de sequestro internacional, mas venceu a ação e ganhou a guarda do menino. Por sete anos, ela viveu com o filho no Brasil.

“Ele já havia me ameaçado e está no processo que ele ia me matar, que ele ia matar o nosso filho, que ele ia se matar. Então, assim, a gente tentou viver o mais normal possível, mas sempre preocupados, porque ele é uma pessoa agressiva”, relatou.

No ano passado, em uma visita do pai, ela diz que o filho manifestou a vontade de retornar para a Bélgica. A Justiça autorizou o retorno, segundo a mãe, sem levar em conta os alertas de violência doméstica que ela afirma ter sofrido e promessas que teriam sido feitas pelo pai.

“Eu comecei a verificar e monitorar o que que estava acontecendo, porque inclusive o pai dele ficou entrando em contato com ele. Então eu ´’printei’ tudo. As mensagens de que ele ia ganhar um cartão com mil reais ou mil euros todo mês, que ia ter brinquedos, que ele ia ter jogo, que ele não podia deixar passar essa oportunidade. Essas eram as mensagens mais fortes”, contou. E acrescentou:

Então, ele foi meio que seduzindo e manipulando o adolescente. Isso não é presente, se chama suborno.”

A Convenção de Haia – que baseou o processo – prevê que a Justiça pode ouvir a criança se avaliar que ela já atingiu idade e maturidade para que a sua opinião e vontade sejam analisadas.

Mas, para mãe que foi processada, a vulnerabilidade do filho e os riscos não foram levados em consideração pela Justiça após o pedido do filho.

“Tanto prova que eu não ia ter mais contato, que tem cinco meses que não tenho mais contato com meu filho”, completou.

Pedido de modernização

O Coletivo “Mães de Haia”, formado por mulheres que perderam a guarda dos filhos após decisões com base no tratado, pede a modernização da convenção e que seja levada em conta como fator de risco para a criança a violência doméstica praticada pelo genitor.

“Se você é uma mãe solo que não recebe pensão e tem que pagar a escola, moradia e advogado, como é que vai pagar 20 mil reais de entrada numa assessoria jurídica internacional? Você não consegue fazer uma disputa de direito internacional não tendo dinheiro para pagar. Você se endivida para poder pagar e defender o seu filho. São condições muito árduas”, disse.

Em outubro, as Mães de Haia e outros coletivos ao redor do mundo vão apresentar ao tribunal uma petição para que mudanças sejam empregadas com urgência. A petição já tem 15 mil assinaturas.

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