Tenho medo de ser mãe de uma criança negra

Veículo: UOL - SP
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Faz 25 dias que três crianças negras sumiram em Belford Roxo, na Baixada Fluminense, e até agora as famílias não têm nenhuma notícia do paradeiro. Os três meninos desapareceram no dia 27 de dezembro do ano passado. Segundo relatos, eles brincavam perto de um campo de futebol, no bairro Castelar, onde moram.

Em todas as vezes em que as fotos de Lucas Matheus, 8 anos, de Alexandre, 10 anos, e de Fernando Henrique, 11 anos, apareceram para mim, me peguei pensando sobre a responsabilidade que é ser mãe de uma criança negra.

E sempre me bate medo. Sinto que nunca vou estar preparada para isso.

É claro que entendo os desafios da maternidade como um todo. Mas quando se trata de uma criança negra, mais desafios se desenham. Lembro-me da primeira vez em que ouvi o relato da empresária e apresentadora Ana Paula Xongani. Influenciadora em assuntos de maternidade, ela narrou um episódio de racismo que sua filha pequena sofreu, quando outras crianças se recusaram a brincar com ela.

Quase que diariamente, como um soco no meu estômago, sou lembrada através de notícias e relatos de mães (ou pais, tias, avós, responsáveis por crianças negras) de uma dura realidade. Eu posso dar afeto, educar, cuidar e gerar amor para um filho negro e mesmo isso tudo pode não bastar. Eu só consigo pensar que essa vida, pela qual eu serei responsável pode ser tirada de mim.

Eu sei que você, leitor, ainda pode estar questionando: “qualquer criança pode ser assassinada”.

E para te explicar esse meu sentimento, vale retomarmos os dados sobre a morte de crianças e adolescentes vítimas de violência só no estado do Rio. Cerca de 60 crianças foram vitimadas só em 2020, segundo relatório da plataforma Fogo Cruzado. E não precisa de muito para concluir que a maioria era negra.

Além das vidas perdidas para a violência, do luto, da saudade, os responsáveis por crianças negras enfrentam ainda muitas outras violências.

Culpabilização

Quantas vezes você ouviu rumores de que uma criança negra assassinada era, na verdade, “bandida”? Como se isso justificasse a violência?

A verdade é que cansei de ver mulheres tendo que descer avenida rasgando suas dores no meio da praça. Tudo para dizer que seus filhos não mereciam morrer, tendo que desmentir fake news na luta para manter a memória e integridade dessas crianças.

Essas mulheres precisam lidar com a responsabilização pela própria perda, além da omissão ou até mesmo a culpa do Estado —não podemos esquecer do assassinato de Ágatha Felix, no Complexo do Alemão, em que a Polícia Militar é a principal suspeita.

A impressão que eu tenho é que há pouco empenho em alardear o desaparecimento de Lucas Matheus, Alexandre e Fernando Henrique. Vejo o esforço da família e de alguns poucos veículos de comunicação, e penso no quanto nosso poder de mobilização é fechado. Nós, negros, transformamos nossos perfis em redes sociais em pequenos obituários, em que os rostos estampados são sempre os mesmos, seguindo narrativa semelhante:

Nessas horas, fica clara a diferença de importância e atenção dada este tipo de história quando se trata de vidas negras. Até hoje, o mundo está chocado com o caso de Madeleine McCann, a menina britânica que desapareceu em Portugal, há 14 anos. Sabemos na ponta da língua contar essa história.

Não equiparo as dores, veja bem, mas não consigo aceitar que, há mais de 20 dias, três mães não conseguem dormir sem saber como e onde estão seus filhos.

A cobertura do caso poderia ser melhor, a revolta popular com esse caso deveria ser maior.

Mas vivemos no país que, segundo dados do Atlas da Violência de 2020, os assassinatos de pessoas brancas caíram, enquanto os de negros aumentaram. Somos 75,7% das vítimas.

Temas deste texto: Racismo - Violência