‘Tigrinho’ para pequenos: influenciadores mirins são usados para divulgar jogos de azar entre crianças e adolescentes

Veículo: O Globo - RJ
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Com cédulas de R$ 50 e R$ 100 em mãos, um influenciador de apenas 8 anos posa em seu perfil no Instagram após prometer para seus mais de 2 milhões de seguidores dinheiro fácil com apostas em jogos de azar como o Fortune Tiger, conhecido como Jogo do Tigrinho. Outra menina, de 13, diz que nasceu para ser “milionária, e não funcionária” ao compartilhar supostos retornos financeiros da mesma plataforma, que parece hipnotizar com seu estilo de desenho animado e cores vibrantes.

A influência dessas crianças e adolescentes nas redes sociais tem causado preocupação. O Instituto Alana denunciou a empresa Meta, dona do Instagram, ao Ministério Público de São Paulo após identificar dez perfis de influenciadores mirins que promovem sites de apostas para menores. Eles têm entre 6 e 17 anos e são de Alagoas, do Ceará, da Paraíba, do Rio e de São Paulo. Além de recrutar crianças para publicidade, essa teia ilegal de interações já adentrou o ambiente escolar e tem levado ao vício em jogos de azar.

Comportamento padrão

Em grande parte, os chamados publiposts são gravados pelos pais ou responsáveis legais dos menores e associados a sorteios de motos, celulares e dinheiro. Os canais têm entre 200 mil e mais de 9,5 milhões de seguidores, muitos deles também crianças. Os conteúdos de cassino online divulgados nos perfis dos influenciadores mirins costumam ficar disponíveis por 24 horas com um link que diz que a plataforma indicada está pagando para quem desejar apostar.

— É possível ver nas respostas aos posts que inúmeras crianças comentam e são influenciadas. A falta de regularização desses jogos e de fiscalização da Meta contribuem para violação dos direitos. As famílias são a ponta mais fraca, porque todos estão imersos na febre dessas publicidades ilegais — alerta Maria Mello, coordenadora do Criança e Consumo do Instituto Alana.

Ao reportar as publicidades como fraudulentas no Instagram, o instituto diz ter recebido respostas, em alguns casos, de que os conteúdos não violavam as regras da rede social. A Meta rebateu a informação, em nota, alegando que não permite menores de 13 anos em suas plataformas, salvo em casos de contas gerenciadas por um responsável, e que remove “conteúdos potencialmente voltados a menores de 18 anos que tentem promover jogos online envolvendo valores monetários”. A Promotoria da Infância e Juventude de São Paulo analisa a denúncia do Alana.

— A ideia da aposta é mágica. É visto como um mecanismo de recompensa rápida e fácil que atrai as crianças — diz Isabel Kahn, professora da faculdade de psicologia da PUC São Paulo.

Pais desesperados

Os jogos de azar são ilegais e proibidos no Brasil. Já as Bets, casas de apostas esportivas na internet, foram regulamentadas no ano passado. Apesar disso, em ambos os casos, expor menores a atividades ilícitas ou nocivas ao seu desenvolvimento pode ser considerado crime, segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente, e fere ainda leis de proteção à infância e regras de entidades como o Conselho Nacional de Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) e o Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar).

Em depoimento ao GLOBO, a aposentada Gislene Barros, de 62 anos, coordenadora do grupo Jogadores Anônimos de Juiz de Fora (MG), que ajuda viciados em jogos, contou um caso recente de uma mãe que pediu ajuda para o filho. Ele tinha apenas 13 anos e já estava viciado em apostas online. Segundo Gislene, o jovem pegou o CPF de um parente para se cadastrar na plataforma e usou o cartão de crédito da mãe enquanto ela trabalhava. O prejuízo foi de mais de R$ 4 mil.

— A mãe chegou na reunião completamente perdida. Disse que trabalha muito, que achava que o filho estava brincando no celular, mas estava apostando. Para a situação financeira da família, a perda foi enorme. Como não atendemos crianças, a indicação foi procurar um psicólogo — relata a aposentada, que está “limpa” do vício há 22 anos.

Deficiência acadêmica

De acordo com o psiquiatra Daniel Spritzer, coordenador do grupo de estudos sobre vícios tecnológicos, a publicidade apresenta um impacto direto por apresentar o jogo de azar como uma atividade socialmente desejável e divertida. Isso pode influenciar jovens a verem essas práticas como inofensivas. Além disso, diz o médico, as plataformas promovem uma visão distorcida sobre dinheiro e sucesso.

— Estudos mostram que crianças e adolescentes são de duas a quatro vezes mais vulneráveis do que adultos a desenvolver problemas relacionados a apostas. Os impactos são comportamentos violentos, risco aumentado de abuso de álcool e outras drogas, além de altas taxas de depressão e ideação suicida — enumera Spritzer.

A professora Noemi Lima, que leciona Artes em uma escola estadual no interior do Rio de Janeiro, conta que a hora do recreio e até das aulas é usada por alguns de seus alunos do 9º ano para apostas no Jogo do Tigrinho. No ano passado, relata, um deles, que tinha 15 anos, disse que “ganharia dinheiro o bastante para agradar a namorada” através das apostas. Na ocasião, o adolescente tinha conseguido R$ 150, após investir R$ 20.

— Esse aluno se espelhava em um influencer que postava lives entrando em lojas de grife e ostentando carros e joias. A realidade de parte dos alunos é saber mexer em WhatsApp e Instagram, sem maiores aprofundamentos. Fiz uma pesquisa e constatei que não sabem usar e-mail, Google Agenda — relata a professora.

O professor de História e Sociologia Victor Hugo da Silva, que dá aulas na rede estadual de São Paulo, diz ter começado a se preocupar com o assunto ao ver seus alunos do ensino médio, de 16 anos em média, fazendo vaquinhas para apostar em cassinos online.

— Apresentei depoimentos de pessoas que perderam dinheiro e se prejudicaram com a prática, mas eles não admitem ainda o vício — afirma. — Existe uma ânsia de jogar, acompanhado de uma inquietação de não perder. O compartilhamento de links dessas plataformas entre eles também já é realidade.

A crescente desse comportamento entre os jovens, de acordo com o psiquiatra Daniel Spritzer, pode resultar em uma queda significativa no rendimento escolar.

— Quando os adolescentes apostam na escola, eles ficam desligados do conteúdo acadêmico. Estudos indicam que adolescentes envolvidos em jogos de apostas são mais frequentemente suspensos e reprovados — conclui.

Procurados pelo GLOBO, o Conanda, gerido pelo Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, e o Ministério da Educação informaram que não dispõem de cartilha informativa para pais e escolas sobre jogos de apostas.

Como prevenir?
  • Monitoramento ativo: os pais precisam acompanhar o uso de internet dos filhos, estabelecendo regras claras sobre o que é apropriado para a idade deles.
  • Diálogo aberto: é importante que pais e responsáveis mantenham um diálogo aberto com os filhos sobre os perigos dos jogos de azar, e encorajá-los a discutir suas experiências e preocupações.
  • Campanhas de prevenção: realizar campanhas públicas para informar sobre os riscos dos jogos de azar, focando especialmente em jovens e suas famílias para coibir esse tipo de comportamento.
  • Programas educacionais nas escolas: as instituições podem implementar atividades para alertar sobre as probabilidades reais das apostas e as consequências do jogo, ajudando a desmistificar as noções de “dinheiro fácil”.
  • Fortalecer as leis: criar leis rígidas que restrinjam a publicidade de jogos de azar dirigida a menores, garantindo que estas sejam efetivamente aplicadas.
  • Investimento em assistência: ampliar os serviços de assistência na rede pública para oferecer suporte aos jovens afetados pelo vício em apostas.

 

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