Trabalho infantil: ‘Pandemia agravou situação no DF’, diz secretária de fórum
Trabalho infantil e pandemia: precarização do emprego e da situação econômica das famílias aumentou vulnerabilidade social de crianças e adolescentes
Havia, em 2019 no Distrito Federal, 20.441 crianças e adolescentes de 5 a 17 anos de idade em situação de trabalho infantil, de acordo com o estudo Trabalho infantil no Brasil: análise dos microdados do Pnad 2019, do Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (FPETI).
Segundo Cynthia Ramos, secretária executiva do FPETI-DF, essa situação se agravou nos últimos dois anos, principalmente em razão da pandemia, embora ainda não haja dados estatísticos mais recentes.
“Nos últimos anos, existiu uma tendência de agravamento da situação do trabalho infantil no DF. E com a questão da pandemia esse agravamento piorou, justamente porque houve uma precarização na situação das famílias e na capacidade de se sustentarem de uma maneira mais digna, preservarem seus empregos e manterem as crianças dentro da escola”, afirma a secretária em entrevista ao Brasil de Fato DF.
A proporção de crianças e adolescentes em trabalho infantil no DF em 2019 correspondia a 3,8% do total da população na faixa etária de 5 a 17 anos, número abaixo da média nacional, que era de 4,8%.
Cynthia Ramos destaca, que embora o DF esteja, historicamente, abaixo do índice nacional, enquanto os outros estados com médias maiores conseguiram diminuir seus índices nos últimos anos, esse número está em crescimento. Enquanto o Brasil reduziu o trabalho infantil de 4,8% para 4,2% entre 2016 e 2019, o DF aumentou de 2,2% em 2016 para 3,8% em 2019.
No Brasil, é considerado trabalho infantil todo trabalho realizado por crianças e adolescentes com idade inferior a 16 anos. Se for trabalho noturno, perigoso, insalubre ou atividades da lista TIP (piores formas de trabalho infantil), a proibição se estende aos 18 anos incompletos.
A partir dos 14 anos, o adolescente pode trabalhar como aprendiz, desde que seja seguida a legislação que regulamenta a aprendizagem profissional, que garante aos jovens aprendizes contratação com carteira assinada e direitos trabalhistas, e determina que os adolescentes continuem estudando.
O levantamento do FPETI de 2019 indicou, ainda, que a maioria do universo de crianças e adolescentes trabalhadores do DF era composto por meninos (56,1%), entre 16 e 17 anos de idade (58,1%), negros (73,5%) e residentes em áreas urbanas (74%).
O enfrentamento ao trabalho infantil é feito, principalmente, por centros de assistência social, conselhos tutelares e órgãos públicos fiscalizadores do trabalho.
A secretária executiva do FPETI-DF destaca que, embora o DF tenha um bom equipamento público de assistência social, ainda existe uma dificuldade de acesso a esses aparatos, o que compromete a identificação e a proteção de crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade.
“Existe uma dificuldade de acesso, muitas vezes causada pela falta de informação e pelo medo. As famílias têm medo de que se forem buscar um apoio de assistência social, elas possam ser culpabilizadas por uma questão de negligência ou de maus cuidados. Então, nem sempre aquela criança que está na situação mais vulnerável chega ao serviço social ou à escola para que professores ou diretor, por exemplo, possam identificar que existe uma situação de vulnerabilidade mais grave, um problema de saúde, um problema de violência, e encaminhar essa criança para o sistema de garantia de direitos”, explica Cynthia Ramos.
Confira a entrevista completa:
Brasil de Fato DF: Qual é o panorama atual do trabalho infantil no DF?
Cynthia Ramos: Mesmo a gente não tendo dados estatísticos recentes sobre a situação do trabalho infantil no Distrito Federal, é perceptível apenas por circular nos meios urbanos ou nas regiões do Entorno que a situação se agravou nos últimos dois anos.
O trabalho infantil no DF, historicamente, não é acima da média nacional. A média nacional dos outros estados é bem superior ao que a gente encontrava aqui. O problema é que no DF, ao contrário da maioria das outras unidades federativas, o índice de trabalho infantil vinha numa crescente, enquanto a maioria dos estados que tinha índices mais altos, de 15 a 17%, vinham enfrentando de uma maneira mais bem sucedida o problema e conseguindo reduzir essas taxas. No DF não.
Nos últimos 10 anos, a gente notava que existia uma crescente do problema. Isso a gente podia verificar tanto pela própria informação dos conselhos tutelares, das instituições de preservação de direitos e crianças e adolescentes, que indicavam um agravamento do problema, quanto pelo aumento dos casos de denúncias ao Ministério Público do Trabalho e à Superintendência Regional do Trabalho.
Houve algum impacto da pandemia do coronavírus na situação de trabalho infantil no DF?
Não tivemos coleta de dados no mesmo formato que se fazia antes. Não tem como comparar a evolução nesse período pandêmico, justamente porque a gente teve uma movimentação muito grande na situação financeira das famílias, na situação inclusive de mobilidade de muitas famílias.
Aqui no DF, a gente nota que houve um acúmulo de pessoas ocupando áreas urbanas de forma improvisada, a gente tem vários acampamentos e residências precárias construídas nos jardins e terrenos vazios da cidade, inclusive do Plano Piloto, em áreas nobres. E isso está diretamente atrelado à situação de vulnerabilidade dessas crianças e adolescentes.
Nós percebemos que a grande maioria dessas crianças não está frequentando a escola e passam o dia na rua, podendo se envolver, além de atividades ilícitas e outras formas de violência e de risco, em busca de atividades que possam trazer alguma remuneração. Isso é considerado trabalho infantil informal urbano, que é uma das piores formas de trabalho infantil.
Então, a gente pode dizer que, nos últimos anos, existiu uma tendência de agravamento da situação do trabalho infantil no DF. E com a questão da pandemia esse agravamento piorou, justamente porque houve uma precarização na situação das famílias e na capacidade de se sustentarem de uma maneira mais digna, preservarem seus empregos e manterem as crianças dentro da escola. Mesmo porque, durante o período da pandemia, a América Latina, foi a região onde as escolas ficaram mais tempo com as portas fechadas.
O Estado tem atuado para coibir o trabalho infantil no DF?
Aqui no Distrito Federal, temos uma situação razoavelmente privilegiada, porque tem um bom equipamento de assistência social, que são os CRAS (Centros de Referência de Assistência Social) e os CREAS (Centro de Referência Especializado de Assistência Social), que é justamente responsável pelo atendimento das crianças e adolescentes em situação de trabalho infantil. Além disso, a gente tem um importante número de conselheiros tutelares, que inclusive participam de ações e de momentos de sensibilização promovido pelo Fórum sobre a questão do trabalho infantil.
Esse aparelho público, de certa forma, está disponível de uma forma mais abrangente aqui no Distrito Federal. Nós estamos numa Unidade Federativa que tem um nível de desenvolvimento econômico e social bom. Acaba sendo uma unidade pequena, então a gente consegue ver esses espaços, esses equipamentos públicos, escolas, centros de referência e até mesmo a parte de equipamento de saúde presentes na maioria do território. Mas isso não indica que essas crianças e adolescentes estejam sendo cuidados da maneira que elas deveriam ser, porque existe uma dificuldade de acesso, muitas vezes causada pela falta de informação e pelo medo.
As famílias têm medo de que se forem buscar um apoio de assistência social, elas possam ser culpabilizadas por uma questão de negligência ou de maus cuidados das crianças e adolescentes. Então, nem sempre aquela criança que está na situação mais vulnerável e realmente precisaria ter um apoio, chega ao serviço social ou à escola para que professores ou diretor, por exemplo, possam identificar que existe uma situação de vulnerabilidade mais grave, um problema de saúde, um problema de violência, e encaminhar essa criança para o sistema de garantia de direitos.
Existe um um receio das famílias de serem culpabilizados por estarem em uma situação de vulnerabilidade, por seus filhos estarem indo a rua pra tentar ganhar algum dinheiro, desenvolver alguma atividade que, no fundo, é ilegal, não é crime.
Isso é importante a gente falar: trabalho infantil não é crime, é ilegal, mas não existe essa intenção do poder público de culpar, de penalizar as famílias, mas sim de proteger e apoiar para que elas não precisem recorrer a esse tipo de meio para buscar a sobrevivência e a subsistência da família.
É muito visível, a gente anda pela cidade e vê aqueles grupos de barracas, aquelas ocupações informais com crianças e adolescentes. E a gente sabe que talvez as crianças pequenas acompanham os pais em uma atividade de mendicância ou de de catação de materiais recicláveis, enquanto as as crianças mais velhas, os adolescentes, acabam perambulando sozinhos pela cidade fazendo vigia e lavagem de carro, carregando compras ou realmente pedindo dinheiro, que são formas de trabalho infantil completamente avessas à proteção e à garantia de direitos.
Você mencionou que existem formas de trabalho infantil que são tipificadas como piores, quais seriam elas e porque são classificadas assim? Quais são as mais comuns no DF?
Todo trabalho infantil é proibido. Ele é contrário à infância e se opõe ao desenvolvimento pleno e à manutenção da segurança dessas crianças, para que elas cresçam e se desenvolvam sem estarem expostas a riscos ou à violências.
Existem, dentre todas as atividades que uma pessoa pode desempenhar, situações em que pela forma como elas são desenvolvidas, pelo local ou pelos equipamentos, aquilo que é feito é considerado extremamente prejudicial à criança e adolescentes. Quer dizer, seriam atividades perigosas quando desenvolvidas por adultos, então quando a gente está falando de uma criança, que ainda está em fase de desenvolvimento, que não tem plenamente completo o seu organismo, sua maturidade, a sua personalidade, ela desenvolver esse tipo de atividade aumenta muito o risco de prejuízos, inclusive permanentes.
Essas atividades estão dispostas inclusive em lei. Temos as cinco piores formas de trabalho infantil que são: engajamento de crianças em conflitos armados, uso de criança e adolescentes para produções ou atividades pornográficas ou de exploração sexual, o trabalho infantil doméstico, que é considerado uma pior forma no Brasil, o uso de mão de obra de criança e adolescentes para plantio e tráfico de entorpecentes e também as atividades que são consideradas análogas à escravidão.
Não é difícil a gente encontrar no noticiário pessoas que são privadas de liberdade ou estão presas por motivo de uma dívida assumida com os empregadores e que estão em condições indignas de trabalho e por vezes isso acontece com famílias. Quer dizer, não só com adultos, mas as famílias inteiras são colocadas nessa situação de privação de restrição e obrigação de prestação de serviço e isso é considerado uma pior forma de trabalho infantil.
Aqui no Distrito Federal, além do trabalho infantil doméstico, a gente comumente ouve falar que pessoas que foram trazidas do interior para trabalhar em casa de família, que ficaram anos sem receber os direitos e que foram abusados ou que sofreram formas de violência.
No DF é muito comum encontrar também crianças em situação de trabalho em lava-jatos. Embora a gente pense que talvez não seja uma forma tão grave de violação de direito, é sim. Os lava-jatos, além de horas de trabalho e do fato de as crianças ficarem em posições completamente antiergonômicas e expostas a sol, calor, frio, poeira, eles também usam produtos químicos no jato de lavagem. Produtos químicos que pela pressão da água viram quase que um aerosol e são aspirados e causam problemas respiratórios. Com a reincidência dessas aspirações e a exposição contínua, existe um risco de lesão permanente na saúde dessas crianças e desses adolescentes. Isso é comumente investigado pela pelos auditores fiscais de trabalho.
Como o Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil do DF (FPETI-DF) realiza o enfrentamento ao trabalho infantil?
Como eu mencionei, existe um aparelho importante disponível para a população, mas nem sempre ele é acessado da maneira que deveria. Por isso, são feitas campanhas de conscientização e informação da população sobre a ilegalidade do trabalho infantil, os riscos envolvidos quando a família permite ou incentiva que essas crianças trabalhem precocemente e que existe também uma necessidade de se buscar as autoridades para denúncia de casos, para que a população em geral denuncie pelo disque 100.
A gente tenta incentivar o próprio governo, a própria vontade política para que a sua atenção se volte ao tema do trabalho infantil. Hoje a gente sabe que existem situações muito graves ameaçando os direitos de crianças e adolescentes justamente pela questão da precarização da situação econômica de muitas famílias.
Mas a gente percebe que o número de trabalho infantil vem aumentando, mas não está aumentando na mesma medida os casos de denúncia. Ou seja, a gente sabe que está aumentando o número de crianças na rua, mas não necessariamente está aumentando o número de denúncias, as pessoas não estão tão sensíveis ao tema. Então, esse é um dos principais objetivos do Fórum.
Canais de denúncia
O trabalho infantil deve ser denunciado por meio dos canais:
– Disque 100
– Site do Ministério Público do Trabalho
– Conselhos Tutelares
– Promotorias e Varas da Infância e demais órgãos do Sistema de Garantia de Direitos
No DF, a população tem acesso ao Ligue 125, canal desenvolvido pela Secretaria de Justiça e Cidadania.
Para saber mais sobre o direitos das crianças, conheça a newsletter Infância na Mídia.