Trauma: que cuidados devemos ter após a tragédia de Suzano
Após uma semana do massacre ocorrido na escola Raul Brasil em Suzano (SP), muito se debateu sobre temas como as possíveis causas de tal episódio de extrema violência e sobre possibilidades de ação após a tragédia. Alunos, familiares e funcionários da escola prestaram suas homenagens às vítimas e têm recebido assistência médica e psicológica, buscando, de maneira individual e coletiva, retomar suas vidas e cuidar da imensa dor e do trauma que ficou.
Segundo o psicanalista e filósofo Robert Stolorow, especialista em trauma emocional, o trauma é constituído em um contexto intersubjetivo no qual a dor emocional intensa não consegue encontrar um lugar para estar. Nesse contexto, estados afetivos dolorosos tornam-se insuportáveis – isto é, traumáticos. Já para a pesquisadora Kai Erikson, podemos distinguir dois tipos de trauma: o trauma individual e o coletivo.
O trauma individual é aquele no qual um acontecimento é sentido como um golpe tão forte que rompe as nossas defesas repentinamente. Vem com uma força tão brutal que não se pode reagir a ela com eficácia, fazendo o indivíduo se sentir vulnerável, solitário, com medo e entorpecido.
Já o trauma coletivo caracteriza-se pelo sentimento de um golpe tão violento que é capaz de danificar os laços que ligam as pessoas de determinada comunidade, trazendo a percepção de que determinado coletivo não existe mais enquanto local de apoio e confiança, assim como a sensação de que a unidade de determinado grupo desapareceu.
O ataque feito à escola Raul Brasil representa as duas formas de trauma, portanto é preciso refletir sobre as possíveis consequências do ataque nos dois âmbitos.
O trauma individual
O indivíduo traumatizado sente que perdeu o controle ao ser afetado por uma determinada situação ou circunstância e, consequentemente, ele se sente extremamente vulnerável. Além disso, é frequente que alguém traumatizado sinta que algo terrível pode voltar a acontecer a qualquer momento ou que o perigo eminente pode estar em qualquer lugar. No campo da Psicologia, há um debate caloroso sobre o que deve ser feito frente a memórias traumáticas: deve-se revisitar e falar sobre as lembranças traumáticas ou isso não é necessário e pode até mesmo ser prejudicial ao sujeito?
Como cada indivíduo é único, esta é uma questão pessoal. Para muitos, pode ser benéfico e organizador contar e recontar a experiência traumática; para outros, porém, pode ser destrutivo nos dias seguintes ao trauma. A recuperação do trauma deve, portanto, ser vista como um processo que é trabalhado ao longo do tempo e em estágios. O primeiro passo é criar espaço para que cada um possa expressar abertamente suas preocupações, independentemente de se discutir os detalhes do trauma. É importante se certificar que cada aluno possui uma relação de confiança e sente que pode contar com ao menos um adulto na escola.
Há uma proposta em andamento no Senado que propõe a obrigatoriedade de psicólogos em escolas públicas. Para Vitor Tadeu Epiphanio, o autor da proposta, a Psicologia pode contribuir em questões relacionadas à convivência e ao desenvolvimento no ambiente escolar e não só auxiliar em momentos traumáticos como o vivido em Suzano. Caso não haja tal profissional dentro da escola ou que atue em parceria com a instituição, é importante aumentar o diálogo com médicos e com essa área de saúde para que sejam feitos encaminhamentos. É igualmente importante oferecer consultoria para os casos mais delicados, que podem incluir distúrbios de sono, sintomas de depressão, ansiedade e transtorno de estresse pós-traumático – distúrbio de ansiedade caracterizado por uma série de sinais e sintomas físicos, psíquicos e emocionais, no qual ao se recordar do episódio, o indivíduo pode ter a mesma sensação de sofrimento vivido na situação traumática, assim como se isolar socialmente e ter pensamentos recorrentes e intrusivos que remetem ao trauma, além de irritabilidade, dificuldade de concentração, tonturas e hipervigilância.
Além do que é pensado para os alunos, os gestores devem dar atenção à formação de uma rede de apoio exclusiva aos funcionários da escola. Com quem professores, coordenadores e demais funcionários podem contar no caso de necessidade? Quem estará atento a essas necessidades emocionais, muitas vezes sutis e suprimidas pela alta demanda de trabalho inerente à profissão?
O trauma coletivo
Para além do debate fundamental sobre o papel das famílias e do Estado nessa situação, podemos pensar também em como restabelecer o clima de segurança no ambiente escolar. Dentro de cada contexto, o restabelecimento desse clima é o primeiro passo e o mais central da recuperação. Segundo pesquisadores sobre violência e segurança nas escolas, após episódios de extrema violência como o ocorrido em Suzano, é importante criar condições ou reforçar aquelas que já existem para a existênia de um ambiente escolar seguro.
A recomendação dos especialistas é que seja avaliado o estado emocional dos alunos e funcionários da escola com frequência após o ocorrido, enfatizando a importância da escuta atenta na escola, encorajando os alunos a planejar, desenvolver e dar continuidade a projetos que visem o estabelecimento de clima de paz, respeito e segurança na escola, e que haja um programa estruturado anti-bullying. Para ajudar no processo de luto, é interessante ouvir como os envolvidos gostariam de prestar homenagem após o evento traumático e reformular o ambiente para trazer a sensação de recomeço à comunidade. Outra proposta é retomar os valores e princípios que trazem unidade a essa comunidade, reforçando aquilo que a manterá unida para que juntos possam fortalecer uns aos outros.
Certamente não é papel exclusivo de professores, gestores e funcionários pensar em todos os aspectos preventivos e de cuidados após uma calamidade como o tiroteio de Suzano. Entretanto, por estar em contato direto com alunos e por também serem afetados de maneira direta ou indireta pela tragédia, é importante que tais profissionais possam também pensar sobre essas questões e se sentir acolhidos e preparados, caso decidam planejar e conduzir ações na escola.
Há muitos outros atores envolvidos nesse episódio traumático – as famílias, o Estado, a segurança pública, as leis que regem as nossas normas de convivência, entre outros. Definir um ou mais culpados e responsáveis não é a solução, e sim pensar de maneira integrada em como cada um pode desempenhar o próprio papel e cuidar do trauma de forma individual e coletiva.